Open-access Representações sociais de mulheres em relação à assistência policial prestada nas situações vivenciadas de violência domésticaWomen's social representations in relation to police assistance provided in living domestic violence situationsRepresentaciones sociales de las mujeres en relación con la asistencia policial proporcionada en situaciones de violencia doméstica

Resumo

Objetivou-se analisar as representações sociais de mulheres em situação de violência doméstica sobre a assistência policial. Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa, fundamentada na Teoria das Representações Sociais, realizada num município do Sudoeste da Bahia, Brasil. A coleta ocorreu entre os meses de julho e novembro 2017 por meio da Técnica de Associação Livre de Palavras, analisadas com auxílio do software EVOC, versão 2005, e entrevista semiestruturada com base na Técnica de análise de conteúdo. Constatou-se que as representações sociais das mulheres em situação de violência doméstica sobre a assistência policial encontram-se ancoradas em experiências repletas de medo, insegurança, constrangimento, de busca por amparo legal e punição ao agressor. Observou-se que a assistência policial oferecida à mulher em situação de violência doméstica não contempla suas vivências, mostrando a necessidade de redesenho da estrutura, da organização e das relações estabelecidas no atendimento policial.

Descritores: Enfermagem; Gênero-e-Saúde; Polícia; Violência-contra-a-Mulher

Abstract

The objective was to analyze the social representations of women in situation of domestic violence on police assistance. This is a qualitative research, based on the Theory of Social Representations, held in a Southwestern municipality of Bahia. The collection took place between July and November 2017 through the Free Word Association of Technique, analyzed with the aid of EVOC software, version 2005, and semi-structured interview based on the Content Analysis Technique. It was found that the social representations of women in situations of domestic violence on police assistance are anchored in experiences filled with fear, insecurity, embarrassment, seeking legal protection and punishment of the aggressor. It was observed that the police assistance offered to women in situations of domestic violence does not include their experiences, showing the need for redesign of the structure, organization and relationships established in police assistance

Descriptors: Gender-and-Health; Nursing; Police; Violence-against-Women

Resumen

El objetivo es analizar las representaciones sociales de las mujeres en situaciones de violencia doméstica con relación a la asistencia policial. Esta es una investigación cualitativa, fundamentada en la Teoría de las Representaciones Sociales, se lleva a cabo en un municipio del Sureste de Bahía. La recolección se llevó a cabo entre julio y noviembre de 2017 a través de la Prueba de asociación de palabra libre, analizada con la ayuda del software EVOC, versión 2005, y una entrevista semiestructurada basada en la técnica de análisis de contenido. Se encontró que las representaciones sociales de las mujeres en situaciones de violencia doméstica con relación a la asistencia policial están ancladas en experiencias llenas de miedo, inseguridad, vergüenza, buscando protección legal y castigo del agresor. Se observó que la asistencia policial ofrecida a las mujeres en situaciones de violencia doméstica no incluye sus experiencias, lo que demuestra la necesidad de rediseñar la estructura, organización y relaciones establecidas en la asistencia policial.

Descriptores: Enfermería; Género-y-salud; Policía; Violencia-contra-la-Mujer

Introdução

A violência doméstica contra a mulher caracteriza-se como um fenômeno social persistente e multifacetado que fere a integridade psicológica, moral e física, cujas manifestações trazem em seu bojo uma relação de subjugação ou de poder que acarretam situações de medo, dependência, isolamento social e intimidação para a mulher. É concebida como um ato que envolve o uso da força real ou simbólica, com intuito de submeter o corpo e a mente à vontade e liberdade de outrem1.

Essa situação alarmante e de ocorrência tão antiga e privada, perpetrada principalmente pelo parceiro íntimo, vem chamando atenção da mídia, dos pesquisadores, entidades sociais e órgãos públicos, ao suscitar a necessidade de intervenção urgente das esferas de segurança pública, da saúde e do Judiciário como um enfrentamento de um problema universal, considerando seu impacto desastroso à mulher em situação de violência, nas áreas econômicas, sociais, educacionais e da saúde2.

É marcada pela hegemonia do poder masculino cristalizado em séculos de dominação de uma sociedade culturalmente machista. A busca por uma resposta é algo recente no Brasil, assim como é o processo de judicialização do problema, não apenas em relação ao aparato legal centrado no fenômeno, mas pela necessidade de implementação de estruturas específicas de enfrentamento, como de serviço policial para amparar as vítimas e/ou punir os agressores3.

A Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2013, revelou que a prevalência global de violência contra a mulher perpetrada por parceiro íntimo foi de 30% (intervalo de 95% de confiança - IC95%: 27,8%-32,2%). As mulheres que vivem nos países da África, Oriente Médio e Sudeste da Ásia são as mais acometidas (em torno de 37%), seguidas pelas mulheres das Américas (aproximadamente 30%)4.

No Brasil, esse tipo de violência ocorre em proporções gigantescas e alarmantes, merecendo uma atenção especial para o direcionamento de políticas públicas mais efetivas no sentido de proteger a mulher em situação de violência desta realidade. No período entre 2010 e 2013, com a taxa de 4,8 homicídios por 100 mil mulheres o Brasil num grupo de 83 países com dados fornecidos pela Organização Mundial da Saúde, ocupou a 5ª posição no ranking da violência, demonstrando que os números excedem, em muito, os encontrados na maior parte dos países do mundo. Apenas os países como El Salvador, Colômbia, Guatemala e a Federação Russa evidenciaram taxas superiores às do Brasil5.

Entre 2018 e 2019, 1,6 milhão de mulheres sofreram espancamento ou tentativa de estrangulamento no Brasil, enquanto 22 milhões (37,1%) de brasileiras passaram por algum tipo de assédio. No ínterim do domicílio, a violência foi marcante, os números revelam que 42% ocorreram no ambiente doméstico. Após sofrer violência, mais da metade das mulheres (52%) não denunciou o agressor6.

Assim, merece destaque a criação da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM), um acontecimento importante no contexto brasileiro. Fruto da luta dos movimentos feministas frente ao descaso dos serviços policiais à violência doméstica de outrora, representa atualmente o sistema policial de referência, ao configurar-se como espaço de conscientização das mulheres contra o poderio masculino, a partir de escuta acolhedora, olhar e compreensão distinta em cada caso, no intuito de proporcionar proteção e representação legal7.

A ação policial na DEAM, que representa a Polícia Civil, é regida pela Lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha. Esta Lei representa um marco histórico no ordenamento jurídico brasileiro ao criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, incutindo a obrigação do Estado de reconhecer as relações de poder desiguais entre homens e mulheres no âmbito público e amparar legalmente as mulheres8.

A polícia civil é composta por delegadas e agentes policiais e suas atribuições estão relacionadas à investigação criminal, apuração de delitos e indiciamento dos culpados com encaminhamento à Justiça. No entanto, observase que muitos são os entraves para que o serviço policial cumpra as determinações da Lei e ampare a mulher em situação de violência e as necessidades específicas apresentadas em cada vivência de violência9.

Ressalta-se também que a atuação da polícia militar requer autoridade policial na atividade ostensiva, orientação, investigação, encaminhamento e prevenção da violência doméstica contra a mulher, além da obrigatoriedade da tomada de medidas cabíveis frente às ocorrências, de modo a subsidiar a ação penal e também as medidas protetivas10.

No entanto, o que tem causado preocupação é a flexibilização em curso do porte de armas de fogo no Brasil. Somente no ano de 2017, mais de 221 mil mulheres foram até as delegacias de polícia para registrar episódios de agressão em decorrência de violência doméstica. Considerando os altos índices de violência doméstica no Brasil, a possibilidade de que cada vez mais cidadãos tenham uma arma de fogo dentro de casa vulnerabiliza ainda mais a sobrevivência de mulheres em situação de violência11.

O objeto deste estudo são as representações sociais de mulheres em situação de violência doméstica sobre os serviços policiais. Diante do exposto, este estudo pauta-se na seguinte questão: Quais as representações sociais de mulheres em situação de violência doméstica sobre os serviços policiais?

Objetiva-se com esta pesquisa, analisar as representações sociais de mulheres em situação de violência doméstica sobre a assistência policial.

Nesse contexto, este estudo suscita a necessidade de reestruturação e fortalecimento da assistência policial como um dos serviços da rede de atenção no enfrentamento da violência doméstica contra a mulher, que é um fenômeno complexo com inúmeras implicações negativas à saúde da mulher e que podem ser potencializados na medida em que estas não encontrem à sua disposição o apoio necessário e a segurança para solucionar seus problemas.

Materiais e métodos

Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa fundamentada na Teoria das Representações Sociais (TRS), realizado com 80 mulheres em situação de violência doméstica que buscaram atendimento no Núcleo de Atendimento à Mulher (NAM) e na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM), localizados em um município do interior do Sudoeste da Bahia.

A TRS aponta para a importância que se tem a produção de conhecimentos plurais constituindo e reforçando a identidade dos grupos em suas práticas e como estes reconstituem seu pensamento, ações e experiências12. Tal teoria tem sido muito utilizada na área de saúde, destacando-se a enfermagem por vislumbrar a multiplicidade dos fenômenos humanos, e por favorecer o esclarecimento do entendimento de mundo dos sujeitos inseridos num contexto social, através de suas experiências e maneiras de perceber os fatos ao seu redor13.

As mulheres em situação de violência participantes do estudo representavam a demanda espontânea dessas unidades de atendimento à mulher em situação de violência doméstica, sendo que foi possível entrevistar apenas 12 delas no NAM e 68 na DEAM. Foram adotados como critérios de inclusão: mulheres em situação de violência doméstica maiores de 18 anos que buscaram atendimento no NAN e/ou prestaram queixa na DEAM, em condições físicas e emocionais que permitiam a participação na pesquisa. Os critérios de exclusão foram: mulheres em situação de violência doméstica que procuravam o NAM e a DEAM apenas para obter informações gerais e que não formalizaram a queixa na DEAM.

Os dados foram coletados entre os meses de julho e novembro de 2017 por meio da Técnica de Associação Livre de Palavras (TALP) e da entrevista semiestruturada. A TALP foi realizada com 80 mulheres individualmente, constituída de uma questão aberta para que a associação livre de palavras pudesse fluir naturalmente. A questão utilizada foi: que palavras vêm à sua cabeça quando eu lhe digo serviços policiais? Foi solicitado que cada mulher falasse cinco palavras. Estas foram organizadas, seguindo uma hierarquia, de acordo com a ordem de importância atribuída pelas participantes.

Os dados obtidos através do TALP foram tratados por meio do software Ensemble des programmes permettant l’analyse des évocations (EVOC) que realiza um para o conjunto do corpus a frequência de cada palavra evocada, a ordem média de evocação e frequência média de palavras14.

Após a realização da TALP, as participantes da pesquisa foram convidadas a participar individualmente da entrevista semiestruturada, no intuito de esclarecer e dar significância às evidências obtidas na TALP a partir do seguinte questionamento: qual sua percepção sobre os serviços policiais no enfrentamento da violência doméstica contra a mulher? Deste modo, a partir da 22ª entrevista os achados começaram a se repetir, ocorrendo à saturação empírica dos dados; foram realizadas mais duas entrevistas, totalizando 24 mulheres entrevistadas.

A entrevista ocorreu numa sala reservada, proporcionando privacidade e maior conforto possível para que as participantes pudessem relatar suas experiências, sendo o tempo médio de cada entrevista em torno de 40 minutos. Foram atribuídos nomes fictícios às entrevistadas do estudo correspondentes a pedras preciosas, no intuito de garantir o anonimato.

Os dados obtidos nas entrevistas foram organizados com base na análise de conteúdo, modalidade temática, que tem como propósito identificar os núcleos semânticos, favorecendo uma comunicação significativa ao alcance dos objetivos propostos. Em seguida, os dados foram classificados e agregados em temas, categorias e subcategorias15 que posteriormente foram relacionadas aos elementos presentes no quadro de quatro casas.

Considerações éticas

Esta pesquisa atendeu a todos os preceitos éticos estabelecidos pela resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde foram cumpridos, e este estudo se encontra registrado sob CAAE Nº. 68229217.2.0000.5578 e parecer Nº. 2.108.544, emitidos pelo Comitê de Ética em Pesquisas da Faculdade Independente do Nordeste (FAINOR).

Resultados

Observou-se que das 80 mulheres que responderam ao TALP, 38 (47,5%) delas pertenciam à faixa etária entre 19 e 40 anos; 33(41,25%) estavam entre 41 a 61 anos e nove (11,25%) encontravam-se entre 62 a 75 anos.

No que diz respeito à escolaridade, 37 (46,25%) não eram alfabetizadas e/ou cursaram até o ensino fundamental, 39 (48,75%) apresentavam ensino médio completo ao ensino superior e quatro (5%) delas eram pós-graduadas.

Em relação ao vínculo empregatício tem-se que 26 (32,5%) mulheres trabalhavam, nove (11,25%) eram aposentadas, 32 (40%) encontravam-se desempregadas e/ou vivendo com auxílio do Programa Bolsa Família que é um benefício do governo brasileiro às famílias de baixa renda, e 13 (16,25%) não apresentavam renda alguma, dependendo exclusivamente do companheiro e/ou familiares para o sustento.

Quanto à situação conjugal, 32 (40%) mulheres se diziam casadas, 38 (47,5%) eram solteiras, seis (7,5%) divorciadas, quatro (5%) conviviam em união consensual.

Com a análise do corpus constituído pelas evocações das 80 mulheres foram obtidas 400 palavras cuja ordem média de evocação (MOME = média das ordens de evocação) foi em torno de três, em uma escala de um a cinco. Em relação às frequências de evocação, o ponto de corte foi inferior ao valor cinco, suprimindo todos os termos com frequência igual a um, dois, três e quatro. Dessa forma, participou da análise 353 termos, o que representa 88,25% das evocações realizadas.

Observouse que das 400 palavras evocadas livremente apenas 46 foram diferentes, indicando uma pequena dispersão em torno da representação do tema pesquisado, evidenciando que a maioria das mulheres em situação de violência doméstica do grupo pesquisado tem semelhante representação sobre o serviço policial.

Assim, associando-se a frequência de evocação dos termos às suas posições médias de evocação, originou-se o quadro de quatro casas (Tabela 1), cuja configuração corresponde a quatro quadrantes com quatro conjuntos de termos, sendo considerado o núcleo central da Representação Social o quadrante superior esquerdo, contendo as palavras de maior importância entre as participantes da pesquisa. No quadrante superior e inferior direito encontram-se respectivamente os elementos que compõem a primeira e segunda periferia que tem uma aproximação do núcleo central, entretanto os vocábulos situados no quadrante inferior esquerdo correspondem aos elementos de contraste da representação16.

Tabela 1
Representações sociais de mulheres em situação de violência doméstica sobre os serviços policiais. Jequié-BA, 2017.

Apoio e proteção do serviço policial

[...] não é ruim, pois a gente acha apoio, e depois que a delegada chamou ele a atenção na audiência, ele parou de procurar por mim, mas poderia ser melhor [...] (Cristal).

[...] acho que as práticas policiais ajudam a mulher, é uma segurança que a gente tem, é uma proteção, pois já tendo, os homens fazem horrores, e não ter seria pior, deveria melhorar mais [...] (Turmalina).

Necessidade de punição ao agressor

[...] eu vim buscar punição também, ah eu quero que o meu ex-marido aprenda a respeitar a mulher, e quero que seja punido pelo que fez não só comigo, mas com a mãe também e as irmãs [...] (Cianita).

Dificuldades e facilidades encontradas pela mulher em situação de violência doméstica no atendimento policial.

[...] falta gente competente, falta efetividade! A polícia foi até o local onde eu fui violentada, mas o meu ex era amigo de um deles e, portanto, eles não fizeram nada, tratou o caso beneficiando meu ex [...] (Safira).

[...] no meu caso mesmo, achei que sofri um descaso, me senti ofendida na delegacia, me disseram que mulher gosta de apanhar mesmo e se não gostasse não vivia com o marido desse jeito [...] (Esmeralda).

[...] A DEAM disponibilizou até uma viatura para me levar e me buscar no trabalho, mas eu achei muito bom essa iniciativa, fui bem atendida, conversaram muito comigo, me orientaram bastante [...] (Granada).

[...] Só teve uma polícia que me orientou, falou: vai lá dê uma queixa, a senhora tem que prestar uma queixa dele, mas os outros nem me olharam [...] (Turmalina).

Discussão

Diante da formação do núcleo central na Figura 1, podese inferir que os termos ali dispostos correspondem à expressão da experiência do vivido pelas mulheres em situação de violência doméstica sobre os serviços policiais, pois as representações funcionam como a decodificação da realidade, produzindo uma antecipação dos atos e dos comportamentos do indivíduo ou coletividade9.

Assim, observa-se que do total de 400 evocações os termos apoio, proteção, punição e lei foram evocados 141 vezes (35,25%). O termo apoio obteve a maior expressividade do núcleo central, com 49 evocações (12,25%), denotando que as mulheres consideram que os serviços policiais deveriam e/ou atuam como suporte importante e necessário para o enfrentamento da violência doméstica.

A Lei Maria da Penha prevê em seu artigo10 que o atendimento da autoridade policial à mulher em situação de violência doméstica deve ser acolhedor, resolutivo, sobretudo objetivo, informando-a sobre seus direitos e redirecionando-as aos serviços de acordo às necessidades inerentes a cada situação encontrada17.

No entanto, salienta-se que de modo geral, a instituição policial ainda não está preparada para atender com o máximo de eficiência os casos envolvendo violência doméstica contra a mulher preconizada pela Lei Maria da Penha, uma vez que as delegacias enfrentam diversos problemas que culminam na escassez de recursos materiais, estruturais e humanos, principalmente no que diz respeito ao investimento na qualificação dos agentes para atendimento frente às nuances de um público tão específico18.

O termo proteção obteve a segunda maior expressividade em termos de evocação, sendo mencionado 37 vezes (9,25%) demonstrando que as mulheres em situação de violência doméstica compreendem que os serviços policiais conferem proteção, principalmente no sentido de interromper a ação do agressor.

A polícia é solicitada em muitas situações para intermediar as relações entre o casal, com ações de ajuda, apoio, proteção e orientação. Destaca-se que a preocupação com a implementação de um atendimento policial especializado para as mulheres é de salutar importância, na medida em que a inexistência do mesmo pode provocar a vitimização secundária da mulher e ao invés de conferir a proteção tão almejada, necessária e prevista em lei, pode-se dar espaço a mais um tipo de violência: a institucional4.

O termo punição está em terceiro lugar na frequência de maiores evocações do núcleo central, e foi 29 vezes (7,25%) mencionado pelas mulheres, o que permite a inferência a partir da ótica das mesmas que o serviço policial também deve apropriar-se de sua autoridade para punir o agressor no intuito de proporcionar uma resposta à violência sofrida pela mulher.

Entretanto, a finalidade da Lei Maria da Penha que rege os serviços policiais especializados não é a punição, mas sim a prevenção da violência de gênero; seja inibindo a ocorrência do delito ou mesmo buscando instrumentos que evitem a reincidência, de forma que para cada crime cometido é prevista uma penalidade específica. Paradoxalmente, às mulheres que almejam punição dos agressores, muitas delas, optavam por manter-se sob o jugo dos agressores, desistindo do processo e desestimulando também o trabalho da polícia, conforme achados da literatura19.

O termo lei obteve 26 evocações (6,5%), destacando-se como o quarto termo de maior importância pelas mulheres entrevistadas, demonstrando que as mulheres em vivência de violência doméstica do estudo representam os serviços policiais como instrumentos facilitadores, de modo que o amparo legal constituído para esse fim seja alcançado, apesar das dificuldades vivenciadas nesse contexto.

É possível perceber a dificuldade de garantir um atendimento que contemple os ditames da lei pelo serviço policial, pois o mesmo funciona com um número reduzido de profissionais, com espaço físico inapropriado e com a fragilidade relacionada à falta de embasamento teórico-metodológico que direcione as ações, propiciando muitas vezes práticas permeadas pelo machismo, descaso e insensibilidade à situação de violência doméstica vivenciada pela mulher. Diante dessas fragilidades, por um lado torna-se compreensível as limitações do atendimento policial, por outro lado, torna-se inadmissível a atuação com base em condutas que divergem do contexto da legislação20.

A análise da totalidade do núcleo central expôs e garantiu a dimensão conceitual e imagética das mulheres em situação de violência doméstica sobre a assistência policial por expressar de forma significativa à consonância e congruência de pensamentos, permitindo-se adentrar no seu universo de valores e compreender com as suas experiências o funcionamento e a articulação desse serviço.

Como o sistema periférico é um complemento indispensável do sistema central, uma vez que protege, atualiza e contextualiza suas determinações normativas, proporcionado aos sujeitos uma flexibilidade e adequação das representações sociais em função de suas experiências cotidianas9, observamse no quadrante superior direito do quadro de quatro casas as palavras formadoras da primeira periferia: demora e resolução.

Os resultados apontam para a necessidade de reestruturação do serviço policial, principalmente no que diz respeito à demora de atendimento, no sentido de viabilizar de forma mais fortalecida a segurança da mulher em situação de violência doméstica.

As palavras com menor frequência, mas que também foram prontamente mencionadas estão dispostas no quadrante inferior esquerdo: acolhedor, bom, descaso, justiça, medo, orientação, paz e ruim. Esses termos não fazem parte do núcleo central, mas representam um desdobramento dos termos de maior frequência endossando a significância dos mesmos e da própria representação.

Os vocábulos acolhedor e bom referidos ao serviço policial buscam caracterizar o atendimento na DEAM. Por sua vez, os termos descaso e justiça, de significados antagônicos, aparecem numa frequência muito aproximada, 10 e 12 vezes respectivamente, denotando que muitas mulheres representam o serviço policial como desatencioso, enquanto que este tem como uma das finalidades cooperar para que a justiça seja feita em favor das mulheres em situação de violência doméstica.

A naturalização da violência contra a mulher também circula no ambiente das delegacias, coexistindo com as sanções da Lei Maria da Penha e o imaginário da organização policial, que por vezes ainda está despreparada para lidar com o fenômeno da violência doméstica e sustentando valores e crenças estereotipadas no que se refere a este assunto, de modo que subsidia o descaso frente a uma situação que requer austeridade, comprometimento, resolução e justiça6, além de reafirmar questões desiguais de gênero e poder que permeiam as relações sociais e afetivas entre o homem e a mulher.

Percebe-se que o medo é algo que se relaciona diretamente com o receio que as mulheres em situação de violência doméstica têm de acionar o serviço policial, principalmente em decorrência do constrangimento de tornar pública a violência e de não ter um atendimento humanizado.

No entanto, a palavra orientação para as mulheres em vivência de violência doméstica, oferece o direcionamento necessário frente aos casos, uma das funções assegurada pela Lei Maria da Penha.

O quadrante inferior direito é formado pelas evocações mais instáveis da representação oscilando e demonstrando visivelmente as suas transformações: atencioso, atendimento, competência, constrangimento, desatencioso, ineficaz, insegurança, respeito, rápido e segurança. Observa-se que os termos constrangimento, insegurança, segurança e respeito têm correlação direta com a dimensão afetiva ao dar visibilidade aos sentimentos vivenciados pelas mulheres atendidas pelo serviço policial, enquanto os termos atencioso, atendimento, competência, desatencioso e rápido relacionam-se à experiência da mulher com o atendimento propriamente dispensado pela autoridade policial.

Estudo mostrou que o grande desafio da Justiça é instituir de que forma vai contribuir com uma política de atendimento que contemple a particularidade de cada situação. Por outro lado, a tarefa diária dos agentes policiais que trabalham com a violência doméstica contra a mulher necessita ser lapidada no sentido de proporcionar segurança às mulheres para que possam se sentir encorajadas a romper o ciclo violento e construir uma vida que não seja pautada no circuito da submissão/agressão21.

Conclusões

As representações de mulheres em situação de violência doméstica sobre os serviços policiais encontram-se mais permeadas de experiências negativas, repletas de medo e insegurança, do que com experiências positivas, embora estas também sejam evidenciadas em algumas falas.

Salienta-se que o serviço de polícia carece de recursos imprescindíveis para atender com eficiência desejada os casos envolvendo violência doméstica nos moldes que preconiza a Lei Maria da Penha, pois as delegacias de forma geral convivem com muitos problemas estruturais, materiais e de pessoal, bem como de investimentos na qualificação dos agentes para atender esse público específico.

Este estudo apresenta algumas limitações e por basearse em autorrelatos, ficou evidente em alguns momentos, a dificuldade de as mulheres em situação de violência doméstica explanarem com mais detalhes as questões que envolviam o atendimento policial, sendo necessário um esforço maior na inquirição das mesmas. Acredita-se também que o local de realização da maioria das entrevistas, a DEAM, pode ter causado certa intimidação às participantes, por se tratar de uma delegacia de polícia, mesmo que tudo tenha sido feito para que se sentissem confortáveis durante a entrevista.

E no que diz respeito a esse atendimento diferenciado, no qual surgem às questões carregadas da subjetividade características do fenômeno da violência, observou-se claramente a partir das representações sociais das mulheres do estudo, a necessidade de ressignificação das práticas assistenciais no serviço policial visando o acolhimento humanizado, maior apoio à mulher e escuta não-julgadora, que pode ser viabilizado a partir da capacitação dos profissionais que atuam nesses serviços.

Assim, torna-se necessário redesenhar o serviço de atendimento, favorecendo ao agente policial qualificação e meios disponíveis para o cumprimento dos ditames legais, pois, muitas vezes não têm efetividade prática, bem como a apropriação da discussão das questões culturais e de gênero que influenciam sobremaneira as relações estabelecidas entre os profissionais dos serviços policiais e da mulher em situação de violência.

Conflito de interesse

Todas as autoras afirmam que não possuem qualquer conflito de interesse relacionado ao artigo.

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Datas de Publicação

  • Data do Fascículo
    Jul-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    28 Ago 2019
  • Aceito
    09 Mar 2020
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