Resumo
Objetivo. Este estudo buscou construir e validar a Escala Multifatorial de Atração por Eventos Mórbidos (AMAEM). Método. Do primeiro estudo participaram 252 pessoas da população geral, as quais responderam à EMAEM e a perguntas sociodemográficas. A análise de componentes principais indicou uma estrutura de cinco fatores. No segundo estudo, a amostra foi de 609 pessoas da população geral brasileira, as quais a escala de personalidade e a escala de busca de sensações. Resultado. A análise fatorial confirmatória apoaiou a adequação do modelo de cinco fatores. Adicionalmente, demonstrou ainda que os fatores da EMAEM podem contribuir com a compreensão de características da personalidade e sua associação com o engajamento em comportamentos antissociais.
Palavras-chave Personalidade; estrutura fatorial; busca de sensações; comportamento antissocial; comportamento de risco
Abstract
Objective. This study aimed to construct and validate the Attraction for Morbid Events Multifactor Scale (EMAEM). Method. Two empiric studies were conducted. 252 people from the general population participated in the first study, in which a main component analysis was conducted to attest the factor structure of EMAEM. In this study, the five-factor model was most suitable. In the second study, the participants were 609 people from the general population that answered personality and antisocial behavior scales, besides EMAEM. Results. Confirmatory Factor Analysis shows the suitability of the five-factor model. Moreover, the EMAEM scale can provide aids to a better understanding of personality traits associated with engaging in risky behavior.
Keywords Personality; factor structure; sensation seeking; antisocial behavior; risky behavior
Introdução
A curiosidade pode ser definida como um desejo pelo conhecimento que motiva os indivíduos a aprenderem novas ideias, eliminarem brechas na informação entre aquilo que sabem e o que gostariam de saber (information-gaps) e resolverem problemas intelectuais (Litman, 2005; Hsee & Ruan, 2016). Ainda que a curiosidade esteja relacionada a processos evolutivamente considerados vantajosos, como a aprendizagem (Gruber et al., 2014), ela também pode ser percebida como uma desvantagem, visto que a procura por informações pode ocorrer a despeito de prováveis resultados indesejados (Hsee & Ruan, 2016).
Desse modo, é possível que as pessoas explorem estímulos sobre morte ou violência devido à possibilidade de obterem ferramentas para lidar com eventos negativos futuros (Oosterwijk, 2017). Com efeito, na pesquisa de Baumeister et al. (2001), os autores encontraram que eventos negativos têm um maior impacto psicológico (e.g. melhor elaboração cognitiva) quando comparados a eventos neutros ou positivos. Conclui-se, então, que ser mais sensível a informações negativas é evolutivamente vantajoso.
No Brasil, o consumo atual de programas de televisão parece concordar com a premissa apresentada. Em um levantamento feito pela Secretaria Especial de Comunicação do Governo Federal, encontrou-se que 63% da população do país elegeu a TV como meio de comunicação preferido para obter informação diariamente (Brasil, 2016). Com base nessa estatística e no conteúdo exibido pela TV aberta, é possível conjecturar que o brasileiro assiste com frequência a programas cujos conteúdos expressam cenas ou relatos de violência. No estado do Ceará, por exemplo, um dos jornais de grande porte (Narlla, 2015) noticiou a consolidação do programa “Barra Pesada” como um dos mais populares do estado, marcando 17 pontos de audiência. Tal programa tem como foco principal de suas matérias eventos associados à violência urbana.
No entanto, apesar do consumo de mídia violenta ser alto no Brasil, o tema se mostra pouco estudado. Em especial, no campo da psicologia, destaca-se que algumas pessoas possuem um traço de personalidade denominado curiosidade por eventos mórbidos. Zuckerman (2007) define a curiosidade por eventos mórbidos como uma necessidade por experiências despertadoras de modo geral, que implica no desejo de presenciar ou ler sobre eventos que promovam altos níveis de sensação, como consumir conteúdos midiáticos violentos, a preferência por esportes violentos, por filmes de terror e suspense, a excitação ao presenciar um acidente de trânsito, dentre outros.
A literatura existente acerca da curiosidade por eventos mórbidos é escassa e muitas das pesquisas sobre o tema são antigas. Zuckerman e Litle (1986) foram um dos precursores no estudo desse tema e encontraram que esse traço de personalidade é associado com aspectos da personalidade desviante, como a busca de sensações. Os autores encontraram que buscadores de sensação pontuaram alto na Escala de Curiosidade Sobre Eventos Mórbidos (Curiosity About Morbid Events - CAME).
Zuckerman (2007) afirma que a busca de sensações envolve além da procura por sensações variadas e intensas, a disposição em expor-se a riscos para que uma experiência nova seja alcançada. De fato, pessoas com alta pontuação em busca de sensações são mais agressivas (Zuckerman et al., 1993), mais curiosas sobre os eventos mórbidos (Zuckerman & Litle, 1986), mais atraídas por comportamentos perigosos (Roberti, 2004) e mais propensas a cometer um crime não violento (Horvath & Zuckerman, 1993). Pode-se conjecturar então que a curiosidade por eventos mórbidos, por estar relacionada ao traço de busca de sensações, até mesmo em sua definição, também se encontre relacionada com a maior probabilidade de engajamento em comportamentos de risco ou antissociais.
Além disso, no estudo da personalidade, a curiosidade por eventos mórbidos também se encontra associada ao modelo de três dimensões primárias da personalidade (Eysenck & Eysenck, 1985). O modelo dos cinco grandes fatores de personalidade (John et al., 1991), que estrutura a personalidade por meio dos fatores neuroticismo, extroversão, amabilidade, conscienciosidade e abertura a mudanças, também pode ser correlacionado com a atração por eventos mórbidos (Pimentel et al., 2014). Pimentel et al. (2014) apontam que amabilidade e conscienciosidade correlacionam-se negativamente com a preferência por filmes de terror. No caso de abertura a mudanças, extroversão e neuroticismo a correlação foi positiva, indicando assim uma preferência pelo gênero. Ademais, um aspecto interessante a ser observado é que o construto parece manter-se estável em pesquisas transculturais (Agnieszka, 2018; Weaver III et al., 1993; Zuckerman & Litle, 1986).
O objetivo do presente artigo é propor, com base na Escala de Curiosidade Sobre Eventos Mórbidos (CAME), a Escala Multifatorial de Atração por Eventos Mórbidos (EMAEM). Especificamente, espera-se, além de adaptar e construir seus itens, apresentar indicadores de validade e precisão, atestando a adequabilidade da medida para utilização em contexto brasileiro.
Estudo 1
Elaboração e análise de componentes principais da EMAEM
Método
Amostra
Contou-se com a participação de 252 pessoas da população geral, divididas quase equitativamente entre sexo (56.9% do sexo masculino), com idades variando entre 18 e 80 anos (M = 31.67; DP = 14.39), cuja maioria afirmou pertencer à religião católica (38.9%), ser solteira (59.9%), heterossexual (82.4%) e ter ensino superior incompleto (29.4%).
Instrumentos
Escala Multifatorial de Atração por Eventos Mórbidos (EMAEM). Foi criada com base na Curiosity About Morbid Events Scale, desenvolvida por Zuckerman e Litle (1986), a qual reflete o interesse em assistir violência ou eventos mórbidos em esportes, filmes, TV, ou em outros eventos no mundo real. A escala original é composta por 20 itens (e.g. “Eu gostaria de ver uma execução”; ou “Gosto de sentir-me levemente assustado pelos filmes de terror”), dos quais sete são invertidos e indicam aversão ou evitação dessas experiências. Na escala adaptada para esse estudo, utilizou-se na íntegra apenas o item “Filmes de terror me deixam empolgado”. Os demais itens foram transformados ou criados de forma que se enquadrassem melhor ao contexto estudado, assim como aos programas televisivos e às tecnologias atuais. O item original “Eu gostaria de ver a realização de uma autópsia”, foi modificado para a versão “Seria interessante assistir a uma autópsia (médicos examinando um cadáver aberto)”, por exemplo. A versão final da escala aplicada aos participantes foi formada por 30 itens, os quais descrevem diversas situações de eventos mórbidos reais ou fictícios. Ressalta-se que essa versão passou por uma análise de juízes, de forma a obter itens adequados avaliados por peritos.
Questionário de caracterização sociodemográfica. Para fins de caracterizar a amostra, foi requisitado aos participantes que respondessem algumas questões acerca de dados pessoais, como idade, religião, orientação sexual, escolaridade, dentre outros.
Procedimentos de coleta de dados
Os dados foram coletados por meio de um questionário online e por questionários impressos, aplicados em locais públicos. Os sujeitos concordaram com sua participação por meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Foi garantido por meio do TCLE, de acordo com a Resolução nº 016/2000 artigo 4º do Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2000), a participação voluntária do sujeito, o esclarecimento sobre os objetivos da pesquisa e o uso que será feito das informações recolhidas.
Procedimentos de análise de dados
Para avaliar a estrutura fatorial da EMAEM foi realizada uma análise de componentes principais utilizando o software SPSS 21.
Resultados
Inicialmente, foi averiguada a adequabilidade da matriz de dados para realização de uma análise de componentes principais. Para tanto, observaram-se o Kaiser-Meyer-Olkin (KMO = 0.83) e o Teste de Esfericidade de Bartlett (435) = 2865,30, p < .001), cujos resultados indicaram a pertinência da matriz para efetuar as análises. Em seguida, foi analisado o número possível de fatores a serem extraídos da matriz. Nessa etapa, foram observados o critério de Kaiser - ou eigenvalue (autovalor) superior a 1, cujo resultado indicou ser possível a extração de até oito fatores; o scree plot (Figura 1), que demonstrou ser adequado extrair até seis fatores da matriz de dados; e a análise paralela, que demonstrou ser mais adequada a extração de até cinco fatores da matriz de dados original.
Com base nos resultados, optou-se por realizar uma análise de componentes principais, com rotação oblimin e fixando a extração de cinco fatores, visto que a análise paralela pode ser considerada o critério mais robusto para definir o número de fatores a serem extraídos da matriz (Hayton et al., 2004). Os resultados podem ser observados na Tabela 1.
A solução final, composta por trinta itens e cinco fatores explicou 50.16% da variância total e obteve alfa de Cronbach de .69. O primeiro fator reuniu dez itens de “Eventos Mórbidos Reais” com alfa de .79; o segundo fator reuniu sete itens de “Aversão a Eventos Mórbidos” e alfa de .73; o terceiro fator agrupou quatro itens de “Eventos mórbidos fictícios” com alfa de .73; o quarto fator reuniu cinco itens de “Eventos Mórbidos Médicos” com alfa de .82; e, por fim, o quinto fator agrupou os quatro itens de “Eventos Mórbidos em noticiários/acidentes” com alfa de .62.
Discussão parcial
Zuckerman e Litle (1986), ao criarem a escala de Curiosidade por Eventos Mórbidos (CAME), almejavam desenvolver uma medida que os permitissem compreender melhor o traço de personalidade descrito, assim como sua associação com os outros, como a busca de sensação. Desde sua publicação, outros estudos fizeram uso da medida proposta (Pinkerton & Zhou, 2008; McDaniel et al., 2007; Weaver III et al., 1993), chegando a ser adaptada e traduzida para aplicação na Espanha (Aluja-Fabregat, 2000).
As estatísticas empregadas em prol de analisar o construto por Zuckerman e Litle (1986) não objetivaram analisar os parâmetros psicométricos da medida em si, de forma que ela foi analisada em função da atitude expressa nos seus itens, ou seja, os itens cujo conteúdo descrevia uma atitude positiva em relação ao evento mórbido relatado eram agrupados, formando a pontuação total da pessoa na CAME, ao passo que os itens que expressavam atitudes negativas se agrupavam formando o escore total em aversão a eventos mórbidos.
Por outro lado, esse artigo pretende contribuir com duas lacunas teóricas, o que justifica o uso da metodologia empregada. A primeira lacuna se configura em contribuir com a compreensão do fenômeno em contexto brasileiro e a segunda em compreender a estrutura fatorial atrelada ao construto estudado.
No contexto brasileiro, identifica-se o problema de ter acesso aos eventos mórbidos somente dentro de temas específicos (Frota, 2013; Santos et al., 2015). No entanto, efetivamente, não foi possível acessar nenhuma publicação que utilizasse os termos “Eventos Mórbidos” ou “Curiosidade por Eventos Mórbidos”, ou ainda que se referisse ao fenômeno como um traço de personalidade.
Quanto à segunda questão, tem-se em vista que, na literatura atual, os estudos acerca do tema são escassos e fragmentados. A fragmentação se refere à ampla gama de metodologias empregadas e às temáticas específicas. Seja essa metodologia experimental (Lynch & Martins, 2015); estudos de neuroimagem (Oosterwijk et al., 2015); avaliando a preferência por imagens neutras, positivas ou negativas visando entender essa preferência pelo estímulo negativo (Oosterwijk, 2017); ou, ainda, empregando a análise fenomenológica interpretativa (Fox, 2013). Dentro desse escopo, o construto vem sendo compreendido como unidimensional pelas pesquisas citadas. Porém, a própria perspectiva de estudar o tema em função de diversos tópicos específicos pode sugerir a existência de fatores dos “Eventos Mórbidos”.
Tendo em vista os objetivos propostos, como resultado da análise de componentes principais, obteve-se uma estrutura fatorial de cinco fatores, cujos parâmetros psicométricos foram índices de satisfatórios a excelentes (Pasquali, 2010). Especificamente, todos os itens da medida saturaram com carga fatorial acima do ponto de corte de |0.30| indicado pela literatura (Hair et al., 2009) em um dos fatores da medida. No entanto, aponta-se que alguns itens saturaram em mais de um fator. Tal fato pode indicar a proximidade entre os fatores, corroborando, inclusive, com a hipótese unifatorial assumida pela maioria das pesquisas. A variância explicada pelo instrumento foi de 50.16%, estando dentro do esperado. Os parâmetros de confiabilidade foram, em sua maioria, acima do indicado para pesquisas ((Pasquali, 2010), o qual é um Alpha de Cronbach acima de |0.70|. A exceção ficou a cargo do fator cinco “Eventos mórbidos em noticiários/acidentes”, que apresentou alfa de |0.62|. Ressalta-se que o parâmetro não ficou tão abaixo do ideal, sendo comum que resultados como esse não interfiram com o prosseguimento de pesquisas e com o uso de instrumentos ((Hair et al., 2009).
Com base no exposto, levantou-se a hipótese de que o construto Atração por Eventos Mórbidos poderia apresentar uma estrutura fatorial como a encontrada, de cinco fatores. Julgou-se pertinente então a realização de um segundo estudo com vistas a averiguar a estrutura fatorial hipotetizada da escala por meio de uma análise fatorial confirmatória e, ainda, analisar a relação da Atração por Eventos Mórbidos, em contexto brasileiro, com seus correlatos (Big Five e busca de sensações).
Estudo 2
Análise confirmatória da EMAEM e relação com seus correlatos
Método
Amostra
Participaram do estudo 609 pessoas da população geral do país, cuja maioria era do sexo feminino (60.3%), heterossexual (77.3%), solteira (59.9%), católica (46.3%), com idades variando entre 18 e 87 anos (M = 32.47; DP = 13.82) e com ensino superior incompleto (41.4%).
Instrumentos
Como instrumentos para a análise, além da escala EMAEM e das questões sociodemográficas adotadas no estudo anterior, utilizou-se os seguintes instrumentos:
Inventário dos Cinco Grandes Fatores de Personalidade - Reduzido (IGFP-5). Proposto por John et al. (1991), traduzido e adaptado para o contexto brasileiro por Gouveia et al. (2009). Os cinco grandes fatores estudados são: “Abertura a Mudanças, Conscienciosidade, Extroversão, Amabilidade e Neuroticismo”. Passos e Laros (2015) apresentaram a escala dos cinco grandes fatores de personalidade em versão reduzida utilizada nesse estudo, contando com 20 itens a serem respondidos em uma escala tipo Likert que varia de 1 = discordo totalmente a 5 = concordo totalmente. Nesta amostra, a escala total obteve Alpha de Cronbach de .74 e os alfas dos fatores foram de .71; .67; .76; .63; e .75, respectivamente.
Escala Abreviada de Busca de Sensações (BSSS-8). Criada por Zuckerman et al. (1978), a fim de analisar o interesse em buscas por experiência e excitação ou aventura e emoção. A versão abreviada foi desenvolvida por Hoyle et al. (2002), contando com oito itens que devem ser respondidos em uma escala tipo Likert variando de 0 = discordo totalmente a 4 = concordo fortemente. A confiabilidade (Alpha de Cronbach) variou entre .68 e .79 (Hoyle et al., 2002; Ferreira, 2009). Neste artigo, o coeficiente da escala foi de .75.
Procedimentos de coleta de dados
A coleta de dados ocorreu por meio da aplicação dos questionários impressos, a partir da colaboração de pesquisadores voluntários. Adotaram-se os mesmos procedimentos éticos do estudo 01.
Procedimentos de análise de dados}
Para as análises, inicialmente, utilizou-se o software SPSS 21. Foram calculadas estatísticas descritivas, comparações de médias (teste t de Student para amostras independentes) e correlações r de Pearson. Em seguida, por meio do software AMOS 21, buscou-se avaliar o ajuste dos dados aos modelos propostos. Nestas análises, considerou-se como entrada a matriz de covariância, tendo sido adotado o estimador ML (Máxima Verossimilhança) e, na comparação dos modelos, levou-se em conta os seguintes indicadores: a razão qui-quadrado por graus de liberdade (χ²/gl), o Goodness-of-fit index (CFI), o Adjusted Goodness-of-fit-index (AGFI) e a Root mean square error of approximation (RMSEA). Vale ressaltar que os modelos com χ²/gl entre 2 e 3 ou inferior, CFI igual ou superior a .90, AGFI igual ou superior a .90 e RMSEA de .08 ou menos podem ser considerados adequados (Byrne, 2001).
Resultados
Antes de apresentar os resultados, é importante ressaltar que, neste estudo, a análise dos modelos desconsiderou os itens que no primeiro estudo apresentaram cargas fatoriais acima de |0.30| em mais de um fator. Em função disso, a escala final contou com 22 itens distribuídos como segue entre os fatores: “Eventos Mórbidos Reais” (itens 08, 14, 15, 16,17, 24, 27; α = .75); “Aversão a Eventos Mórbidos” (itens 10, 20, 28, 30; α = .65); “Eventos Mórbidos Fictícios” (itens 03, 22, 29; α = .69); “Eventos Mórbidos Médicos” (itens 07, 21, 25, 26; α = .82); e “Eventos Mórbidos em Noticiários/Acidentes” (itens 04, 06, 09, 11; α = .65).
Com base nesta distribuição dos itens, efetuaram-se análises fatoriais confirmatórias, testando dois modelos específicos: um unifatorial, agrupando os 22 itens; e outro composto por cinco fatores, em que se considerou a estrutura proposta no Estudo 1. O modelo unifatorial da EMAEM apresentou índices de ajuste abaixo dos pontos de corte estabelecidos na literatura (razão χ2/gl de 7,70, AGFI = .74, CFI = .62 e RMSEA de .10 [IC90% = .100 - .110]). No modelo de cinco fatores os índices de ajustes foram superiores, mas não atingiram níveis satisfatórios (razão χ2/gl de 3.18, AGFI = .89, CFI = .88 e RMSEA de .06 [IC90% = .055 - .065]).
Em função desses resultados, levando em consideração a pertinência teórica, optou-se por observar os índices de modificação e reespecificar o modelo a partir das conexões entre os erros e9 e e19; e7 e e17; e, por fim e13 e e21. Após a realização desse procedimento, os indicadores atestaram o ajuste do modelo de cinco fatores (razão χ2/gl de 2.76, AGFI = .90, CFI = .91 e RMSE de .05 [IC90% = .048 - .059]); todas as saturações foram diferentes de zero (λ ≠ 0; z > 1.96, p < .05), variando entre .44 (Item 4. Tenho costume de assistir a programas ou ler notícias policiais) e .89 (Item 26. Gostaria de assistir a uma cirurgia em que o abdômen do paciente estivesse completamente aberto). A variância média extraída (VME) foi igual a .38 e a confiabilidade composta igual a .93, corroborando a consistência interna da EMAEM. A Figura 2 apresenta e estrutura do modelo proposto.
Uma vez que o julgamento a respeito da validade de um instrumento pode ser mais substancial, dependendo das estratégias de validação que são utilizadas (Cohen et al., 2014), além das análises empregadas para atestar a estrutura fatorial do instrumento, também se buscou avaliar evidências de validade convergente para EMAEM. Para tanto, considerou-se a relação existente entre os eventos mórbidos com a busca de sensações e com os cinco grandes fatores de personalidade (Big Five).
Em relação à busca de sensações, foram encontradas correlações significativas com todos os fatores da EMAEM, de forma que quanto maior a pontuação em busca de sensações, maior também foi a sua pontuação na EMAEM. O fator “Aversão a Eventos Mórbidos foi o único que obteve correlação negativa com a busca de sensações (r = -.14, p < .001). Os “Eventos Mórbidos Médicos” (r = .30, p < .001) e os "Eventos Fictícios” (r = .33, p < .001) apresentaram as correlações mais fortes. Tais resultados podem ser observados na Tabela 2.
No que tange à personalidade, especificamente ao modelo dos Big Five, o traço “Abertura a Mudanças” não apresentou correlações significativas com os fatores da EMAEM. Por outro lado, as pontuações em "Extroversão” se correlacionaram, positiva e significativamente, com a “Aversão a Eventos Mórbidos” (r = .11, p = .002) e com “Eventos Mórbidos em Noticiários/Acidentes” (r = .08, p = .025) e, negativa e significativamente, com “Eventos Mórbidos Fictícios” (r = -.10, p = .005), enquanto que para os demais fatores não foram observadas correlações significativas. A "Conscienciosidade” se correlacionou de forma positiva com os “Eventos Mórbidos em Noticiários/Acidentes” (r = .15, p < .001) e negativa com “Eventos Mórbidos Fictícios” (r = -.13, p = .001). A "Amabilidade” apresentou correlação negativa com “Eventos Mórbidos Reais” (r = -.25, p < .001) e “Eventos Mórbidos Fictícios” (r = -.19, p < .001) e, ainda, correlação positiva com a aversão a eventos mórbidos (r = .15, p < .001). O traço neuroticismo, por sua vez, correlacionou-se de forma positiva com quatro dos fatores da EMAEM (correlações de r = .14, p < .001 em 3 desses fatores e r = .13, p < .001 em “Eventos Mórbidos Reais”), não sendo observada correlação significativa entre esse traço e a “Aversão a Eventos Mórbidos”.
Discussão geral
O modelo unifatorial não demonstrou adequabilidade, endossando a proposta de um
instrumento multifatorial, contemplando diferentes temáticas em cada fator (eventos mórbidos médicos, fictícios, entre outros). Desse modo, o presente estudo demonstra a possibilidade de utilizar um único instrumento geral para o estudo de diversos tipos de eventos mórbidos.
A EMAEM demonstrou boa adequabilidade do modelo de cinco fatores, em especial após a inserção dos índices de modificação. Os índices de adequação do modelo estavam todos dentro dos parâmetros esperados pela literatura (Hair et al., 2009). Quanto aos índices de modificação utilizados, ressalta-se que os termos de erro apresentavam semelhanças no seu conteúdo, como segue:
A primeira díade se evidencia pelos seguintes itens: “Fico empolgado(a) quando assisto a espetáculos nos quais o artista corre o risco de morrer” e “Seria interessante assistir a uma autópsia (médicos examinando um cadáver aberto)”. A análise semântica dos itens permite perceber que o conteúdo de ambos é voltado a ser espectador de um fenômeno mórbido. Não obstante, os itens “Sinto-me incomodado com programas que exibem violência” e “Tenho costume de assistir a programas ou ler notícias policiais”, também apresentam semelhança nos conteúdos, no caso, relacionados a mídias que envolvem eventos mórbidos, seja por aproximação ou aversão. Por fim, os itens “Histórias de crimes e de assassinatos despertam a minha curiosidade” e “Gosto de acompanhar notícias de crimes que envolvem mortes” trazem semelhanças plausíveis pelo fato de explorarem o ato de conhecer os eventos mórbidos através de narrativas.
Para além da investigação da estrutura fatorial dos eventos mórbidos, também se averiguou sua relação com alguns construtos relevantes. Inicialmente, investigou-se a relação existente entre os eventos mórbidos e a busca de sensações. Como destacado, as correlações significativas e positivas foram percebidas em todos os fatores, salvo a “Aversão a Eventos Mórbidos”, onde se encontrou uma correlação significativa e negativa. Ambos os resultados corroboram com estudos prévios (Zuckerman & Litle, 1986; Lynch & Martins, 2015).
Lynch e Martins (2015) apontam que as pessoas com alta busca de sensações possuem propensão ao envolvimento com atividades perigosas e comportamentos ilícitos; pode-se perceber, ainda, que a aversão ao tédio, que é uma das formas de operacionalização da busca de sensações (Hoyle et al., 2002), tem ligação direta com a definição dos eventos mórbidos. Além disso, é notório que os resultados são similares também ao estudo clássico de Zuckerman e Litle (1986). Oosterwijk (2017) alega ainda que essa relação está ligada à evocação de determinados estímulos evolutivos. Em relação à correlação negativa com “Aversão a Eventos Mórbidos”, atribui-se esse resultado a características de segurança, inibição, conformidade e estabilidade (Ferreira, 2009), os quais trazem a concepção de repudiar sensações aversivas e encorajadoras de novas experiências, como os eventos mórbidos.
Em relação à personalidade, os resultados confirmam que a personalidade está ligada de forma significativa ao fenômeno da atração por eventos mórbidos (John, et al., 1991). No que concerne ao traço “Abertura a Mudanças”, ele foi o único fator que não se correlacionou com nenhum fator da EMAEM. Estudos como os de Pimentel et al. (2014) demonstram que a “Abertura a Mudanças” encontra-se relacionada a aspectos dos eventos mórbidos, como gostar de filmes de terror. No entanto, a definição desse traço é destacada a partir de um interesse voltado para experiências culturais e intelectuais (Andrade, 2008), não incluindo apenas a ideia da busca de sensações, mas também uma série de outras características como valorização da estética e criatividade, sem especificar a preferência por nenhum gênero ou tipo de experiências culturais. Conjectura-se que a falta de relação esteja pautada nas demais características do traço de fato não serem correlatas aos eventos mórbidos e à não especificidade dos itens em relação aos tipos de experiências buscadas. Desse modo, na amostra pesquisada é possível que as pessoas que responderam se interessem por experiências novas, mas não relacionadas à temática dos eventos mórbidos.
Já o traço de "Extroversão”, caracterizado por fortes interações interpessoais, capacidade de alegrar-se e externalizar sentimentos, correlacionou-se positivamente com a “Aversão a Eventos Mórbidos” pelo fato de se aproximar de fenômenos mais reforçadores e que demonstram bem-estar. Ademais, tal traço se correlacionou negativamente com “Eventos Mórbidos Fictícios” e “Eventos Mórbidos em Noticiários/Acidentes”, reforçando a ideia de que sujeitos com traços de extroversão buscam sensações voltadas à vitalidade e assertividade (Nunes & Hutz, 2007).
Como esperado, o traço “Concienciosidade” não obteve correlações com os fatores “Eventos Mórbidos Reais”, "Atração por Eventos Mórbidos” e “Eventos Mórbidos Médicos”. Esse traço é caracterizado pela organização, persistência e disciplina (Nunes & Hutz, 2007), e mostrou correlação significativa e positiva com “Eventos Mórbidos em Noticiários/Acidentes”, a qual era esperada, visto que estar informado sobre os perigos e acidentes auxiliam os sujeitos com o autocuidado e a reduzir preocupações sobre seu ambiente. De fato, este achado corrobora o que Oosterwijk (2017) traz acerca de a atração por eventos mórbidos poder estar atrelada à busca de conhecimentos sobre o ambiente social. Além disso, “Conscienciosidade” correlacionou-se significativamente com o fator “Eventos Mórbidos Fictícios”, porém com uma associação negativa, reforçando a concepção de que a conscienciosidade caracteriza-se, também, por uma evitação de acontecimentos e notícias fantasiosas que pouco fornecem informações importantes para comportamentos disciplinados (Andrade, 2008).
Com “Amabilidade”, foi encontrada uma correlação significativa e positiva com o fator “Aversão a Eventos Mórbidos” e, negativa para os fatores “Eventos Mórbidos Reais” e “Eventos Mórbidos Fictícios”. O resultado foi distinto do encontrado por Pimentel et al. (2014), que investigaram a preferência de estilos de filme de acordo com os cinco fatores da personalidade e seus resultados apontaram que aqueles que pontuavam mais em amabilidade preferiam filmes de terror (eventos mórbidos fictícios) em comparação a filmes de suspense.
No entanto, devido o traço ser normalmente definido por atitudes pró-sociais e empáticas (Silva et al., 2007), entende-se que tais pessoas tendem a afastar-se da ideia de presenciar fenômenos que ferem suas concepções de generosidade e interações interpessoais positivas, como normalmente é o caso dos eventos mórbidos (Andrade, 2008). De modo geral, compreende-se que sujeitos com estes traços se distanciam desses fenômenos, dos reais e fictícios principalmente, visto que os outros eventos, como médicos ou de noticiários/acidentes, podem estar associados ao ganho de informações (notícias) e ao entretenimento (seriados e videogames) e, ainda, apresentarem características mais relacionadas a estímulos positivos.
Pessoas com traços de neuroticismo em evidência podem se caracterizar por uma instabilidade emocional tendenciosa a transtornos psicológicos (Nunes & Hutz, 2007). Todas as correlações observadas foram significativas e positivas, exceto pelo fator “Aversão a Eventos Mórbidos”, para o qual não houve resultado significativo. Sujeitos com altas pontuações em "Neuroticismo” parecem também apresentar maior atração por eventos mórbidos por normalmente apresentar uma instabilidade que envolve irritação, frustração de realizações, melancolia e atração por afetos negativos, como tensão nervosa (Andrade, 2008).
De forma geral, os resultados encontrados neste estudo foram no mesmo sentido da literatura. Aponta-se como principal limitação a quantidade escassa de estudos sobre o tema. No entanto, compreende-se que há uma relevância teórica da temática devido a sua associação com um estilo de vida mais arriscado ou antissocial. Não obstante isso, os eventos mórbidos mostraram-se, de fato, relacionados com variáveis psicológicas importantes, como busca de sensações, comportamentos antissociais e traços de personalidade.
Outro avanço a ser pontuado é a elaboração de uma escala atualizada sobre a atração por eventos mórbidos que permite estudar o tema de forma geral e dentro de cinco temáticas específicas, facilitando a metodologia de estudos futuros e diminuindo a necessidade de expor o sujeito a condições experimentais aversivas. No mais, indica-se que estudos futuros façam uso de estatísticas mais robustas e de amostras representativas da população. Quanto aos correlatos dos eventos mórbidos, indica-se também que seja investigada sua associação com outros traços de personalidade, como o "Psicoticismo” e com outras variáveis psicológicas, como o "Bem-estar Subjetivo”.
Referências
-
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Datas de Publicação
-
Data do Fascículo
Jul-Dec 2021
Histórico
-
Recebido
30 Mar 2020 -
Aceito
07 Dez 2021