Open-access Autonomia do usuário na implementação de práticas integrativas complementaresUser autonomy in implementing additional integrative practicesAutonomía del usuario en la implementación de prácticas integrativas adicionales

Resumo

Esse estudo teve como objetivo desenvolver uma reflexão bioética acerca da autonomia dos usuários submetidos às Práticas Integrativas Complementares no contexto do Sistema Único de Saúde, à luz da concepção de Bioética da Proteção. Trata-se de revisão integrativa da literatura com recorte temporal de 2007 a 2017, cuja busca do material ocorreu no mês de abril de 2018, na Biblioteca Virtual em Saúde. Como resultado, foi identificado que a maior parte do material analisado é recente, entre 2010 e 2017, escrita por diferentes profissionais que se preocupam em estudar o tema, em periódicos de nível nacional no idioma português, sendo o interesse predominante entre farmacêuticos e enfermeiros. Foi possível perceber que, na concepção dos usuários, as Práticas Integrativas Complementares investigadas influenciam positivamente na autonomia do usuário. Embora as Práticas Integrativas Complementares sejam consideradas estratégias eficazes na promoção da saúde, surgem desafios ao integrá-las em um contexto onde a biociência domina nos aspectos epistemológicos e culturais. Recomenda-se, assim, que se ampliem as pesquisas sobre Prática Integrativa Complementar, e se invista em metodologias para a sensibilização dos atores envolvidos, visando ampliar a interface com a promoção da saúde, favorecendo a compreensão e a consolidação dessas práticas no cenário do fazer em saúde.

Descritores: Bioética; Paternalismo; Terapias-Complementares

Abstract

This study aimed to develop a bioethical reflection on the autonomy of users submitted to Complementary Integrative Practices in the context of the Unified Health System, in the light of the concept of Protection Bioethics. This is an integrative literature review with a time frame from 2007 to 2017, whose search for the material took place in April 2018, at the Virtual Health Library. As a result, it was identified that most of the material analyzed is recent, between 2010 and 2017, written by different professionals who are concerned with studying the topic, in national journals in the Portuguese language, being the predominant interest among pharmacists and nurses. It was possible to perceive that, in the users' conception, the Complementary Integrative Practices investigated positively influence the user's autonomy. Although Complementary Integrative Practices are considered effective strategies in health promotion, challenges arise when integrating them in a context where bioscience dominates in epistemological and cultural aspects. Therefore, it is recommended that research on Complementary Integrative Practice be expanded, and investment in methodologies to raise awareness among the actors involved, aiming at expanding the interface with health promotion, favoring the understanding and consolidation of these practices in the scenario of doing in health.

Descriptors: Bioethics; Complementary-Therapies; Paternalism

Resumen

Este estudio tuvo como objetivo desarrollar una reflexión bioética sobre la autonomía de los usuarios sometidos a Prácticas Integrativas Complementarias en el contexto del Sistema Único de Salud, a la luz del concepto de Bioética de Protección. Esta es una revisión de literatura integradora con un marco de tiempo de 2007 a 2017, cuya búsqueda del material tuvo lugar en abril de 2018, en la Biblioteca Virtual de Salud. Como resultado, se identificó que la mayor parte del material analizado es reciente, entre 2010 y 2017, escrito por diferentes profesionales interesados en estudiar el tema, en revistas nacionales en portugués, siendo el interés predominante entre farmacéuticos y enfermeras. Fue posible percibir que, en la concepción de los usuarios, las Prácticas Integrativas Complementarias investigadas influyen positivamente en la autonomía del usuario. Aunque las Prácticas Integrativas Complementarias se consideran estrategias efectivas en la promoción de la salud, surgen desafíos al integrarlas en un contexto donde la biociencia domina en aspectos epistemológicos y culturales. Por lo tanto, se recomienda ampliar la investigación sobre Práctica Integrativa Complementaria e inversiones en metodologías para aumentar la conciencia de los actores involucrados, con el objetivo de ampliar la interfaz con la promoción de la salud, favoreciendo la comprensión y consolidación de estas prácticas en el escenario práctico. en salud

Descriptores: Bioética; Paternalismo; Terapias-Complementarias

Introdução

Tem-se o assunto sobre as Práticas Integrativas e Complementares em saúde (PIC) ganhado êxito nos últimos anos, tornando-se uma opção atrativa tanto para os usuários, quanto para os profissionais de saúde que voltaram sua atenção a práticas pautadas na tríade corpo-mente-alma1.

No Brasil, a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) no Sistema Único de Saúde (SUS) foi aprovada em 2006 e ampliada em 2017 e 2018, a qual incentiva o conhecimento, a formação e a divulgação de diversas práticas nos serviços de saúde, especialmente na Atenção Primária a Saúde (APS).

Essas práticas envolvem abordagens de estímulo aos mecanismos naturais de prevenção de agravos e recuperação da saúde, os quais ampliam a visão sobre promoção da saúde e otimizam o cuidado e o autocuidado. São técnicas milenares de saberes e que, nas últimas décadas, se expandiram na sociedade ocidental, haja vista o reconhecimento e crescente interesse por sua utilização tanto pela população, comunidade científica e organizações governamentais, quanto por seus resultados satisfatórios de pesquisas científicas2.

Ao introduzir as PIC, entende-se que a PNPIC auxilia na implementação do SUS na medida em que favorece princípios fundamentais como: universalidade, acessibilidade, vínculo, continuidade do cuidado, integralidade da atenção, responsabilização, humanização, equidade e participação social. Os valores que envolvem essa política são a autonomia e o protagonismo dos sujeitos, a corresponsabilidade entre eles, o estabelecimento de vínculos solidários e a construção de redes de cooperação. Logo, as práticas da promoção da saúde são as que estimulam a autonomia e fortalecem os processos políticos e sociais, provocando a transformação dos determinantes estruturais que reafirmam os princípios do SUS3.

O SUS tem se mostrado aberto ao uso de recursos terapêuticos que sejam mais efetivos em muitas das exigências de tratamento e economicamente mais acessíveis, sobretudo no que se refere às PIC, ou popularmente conhecidas como práticas alternativas.

É importante salientar que pesquisas vêm demonstrando o grande interesse da população em utilizar as PIC como medidas terapêuticas, o que corrobora sua inclusão, recentemente, no âmbito do SUS, mediante o Decreto Presidencial 5.813, de 22 de junho de 2006.

A aprovação das PIC está em crescente ascensão no sistema de saúde, com técnicas como o Reiki, fitoterápicos, homeopatia, cromoterapia, acupuntura, meditação, massoterapia, musicoterapia, aromaterapia, entre outras4. Contudo, os usuários desejam ser esclarecidos sobre as PIC, salientando que é direito deles serem orientados sobre: o mecanismo de ação das diferentes modalidades terapêuticas não-convencionais, a eficácia das mesmas, suas indicações e/ou contraindicações, custos, procedência de produtos e efeitos adversos possíveis, assim como, possíveis riscos de interações entre as mesmas.

As PIC contribuem para a promoção da autonomia dos usuários, as quais ampliam o leque de terapêuticas ofertadas, visto que: abrem possibilidades de escolha, aumentam o grau de corresponsabilização do sujeito por sua saúde, qualificam a relação profissional-usuário, transmitem conhecimentos sobre fatores que incidem no modo de vida e saberes relacionados ao autocuidado, incentivam a prática pessoal e independente, desencadeiam mudanças de hábitos e, melhoram as condições físico e psíquica, aperfeiçoando assim a capacidade reflexiva5.

Contudo, as PIC favorecem para que o usuário tenha maior poder nas decisões terapêuticas. Hoje, o pêndulo entre o paternalismo do profissional e o respeito à autonomia do usuário privilegia a consideração pela liberdade, responsabilidade e capacidade do usuário em julgar e escolher ativamente, junto aos clínicos, quais são as práticas terapêuticas mais harmoniosas com suas prioridades. Assim, o modelo ético mais valorizado nas práticas da saúde é, agora, a autonomia do usuário, embora este princípio sempre envolva a reflexão sobre vulnerabilidade6.

A reflexão bioética se ocupa em proteger os sujeitos a fim de que não sejam afetados pelas situações de vulnerabilidade a que são submetidos. Além disso, presta-se a clarear as ações desenvolvidas no sentido de fortalecer, o máximo possível, a dignidade de usuários e familiares6. A análise bioética deve estender-se às discussões e decisões sobre os direitos e autonomia do usuário na implementação das PIC, inclusive nas instâncias políticas e comunitárias nas quais se organizam usuários, profissionais e familiares.

No modelo do usuário autônomo, os métodos recomendados pelo profissional devem ser totalmente compreendidos pelo usuário, que permitirá ou não as intervenções que lhe forem propostas. A Bioética da Proteção (BP) aponta que a proteção sobre as condições essenciais ao desfrute da saúde opera no desenvolvimento das capacidades pessoais, inclusive quanto a uma maior condição de autonomia e, por isto, se está em uma ação de proteção, não de paternalismo6.

Diante do exposto, o presente estudo teve como guia a seguinte questão: o que versa a literatura sobre o respeito à autonomia dos usuários na implementação das Práticas Integrativas Complementares, por parte dos trabalhadores do Sistema Único de Saúde? Neste sentido, estabeleceu-se como objetivo desenvolver uma reflexão bioética acerca da autonomia dos usuários submetidos às Práticas Integrativas Complementares no contexto do Sistema Único de Saúde, à luz da concepção de Bioética da Proteção.

Materiais e métodos

Trata-se de uma revisão integrativa, cuja proposta combina dados da literatura teórica e empírica, além de incorporar um vasto leque de propósitos: definição de conceitos, revisão de teorias e evidências, e análise de problemas metodológicos de um tópico particular7.

Segundo Jackson8, a revisão integrativa pode ser definida como uma pesquisa na qual o revisor está principalmente interessado em inferir generalizações acerca de questões substantivas de um conjunto de estudos que as tematizam. Neste sentido, a revisão integrativa deve explorar os estudos com eventualidades concorrentes, sugerir novas questões teóricas e identificar a necessidade de novas investigações.

As etapas foram conduzidas a partir de um protocolo de revisão integrativa elaborado com base nas principais referências da área, constando as seguintes fases: identificação do tema, escolha da pergunta de pesquisa e do objetivo, definição dos critérios de inclusão e exclusão dos estudos, definição das informações a serem extraídas dos estudos selecionados, definição das bases de dados e descritores, seleção da amostra e armazenamento, análise e discussão dos resultados.

A busca da produção científica foi realizada no mês de abril de 2018, na Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), que engloba as seguintes bases de dados: Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS), Índice Bibliográfico Espanhol em Ciências da Saúde (IBECS), Sistema Online de Busca e Análise de Literatura Médica (MEDLINE), Biblioteca Cochrane e Scientific Electronic Library Online (SciELO). O acesso aos artigos ocorreu mediante a busca livre no item “Pesquisa na BVS”, utilizando como descritores: Terapias Complementares; Sistema Único de Saúde; Bioética; Paternalismo.

Definimos como critérios de inclusão: artigos originais, relatos de experiência, reflexão, ensaios teóricos, revisões bibliográficas, trabalhos cujos objetivos se referem explicitamente ao objeto de estudo e; publicações nos idiomas português, espanhol e inglês, no período de 2007 a 2017. Foram excluídos os estudos duplicados e aqueles que não contemplavam o escopo do tema proposto.

Resultados

Na aproximação com a temática, procurou-se obras publicadas sobre a autonomia do usuário na implementação de PIC e identificou-se que os estudos relacionados ao tema são escassos. Após a leitura e análise do conteúdo dos artigos selecionados obteve-se dados relevantes que serão expostos a seguir. Para a sistematização dos dados, elaborou-se um quadro resumo no qual constam as variáveis estudadas: título do artigo, periódico, autores e objetivos.

Quadro 1
Distribuição dos artigos selecionados, período de 2007 - 2017, segundo título, periódico, autores e objetivos 2018, Jequié/BA, Brasil, 2018.

Utilizando-se a combinação de descritores, emergiram 25 artigos. Desses, foram excluídos 18 por não contemplarem os critérios de inclusão. Dessa forma, somente 7 artigos foram incluídos para a análise e discussão da presente revisão integrativa.

Em relação aos autores dos periódicos analisados, dos 20 autores, sete (35%) são farmacêuticos, sete (35%) são enfermeiros, dois (10%) são médicos, dois (10%) são cirurgiões dentistas, um (5%) é psicanalista e um (5%) é acadêmico de farmacologia. Isso mostra que os enfermeiros e farmacêuticos realizaram mais estudos nesta área, no entanto, verifica-se que há preocupação de diferentes profissionais em estudar a temática.

Reportando ao ano das publicações, prevalecem os artigos publicados após o ano 2007, em que dois (28,6%) foram publicados entre os anos de 2007 e 2010, cinco (71,4%) nos anos de 2011 e 2017. Isso mostra que estudos relacionados à PIC são recentes e evidenciam, cada vez mais, a preocupação com a temática e o reduzido número de estudos nesta área.

Dos estudos analisados e apresentados no Quadro 1, a maioria (71,4%) foi publicada em periódicos de nível nacional no idioma português e dois artigos (28,5%) foram publicados em periódicos internacionais e em idioma inglês. As publicações ocorreram no período de 2007 - 2017, fato que pode ter acontecido pela influência dos inúmeros incentivos nacionais e internacionais em prol do reconhecimento e utilização das PIC na APS nas últimas décadas.

Dos estudos analisados, três (42,9%) foram artigos originais (A1, A3, A6), dois (28,5%) foram estudos transversais exploratórios (A4 e A5), e um (14,2%) sem descrição metodológica (A2). Seis deles apresentaram as PIC nos seus objetivos, apenas um não apresenta a PIC como objetivo.

Em relação ao método, seis (82,7%) trabalhos foram de natureza qualitativa (A1, A2, A3, A4, A6, A7) e um (14,3%) foi de natureza quantitativa/qualitativa. No universo da pesquisa científica, os diferentes tipos de estudos são importantes para que se possa investigar em profundidade determinadas temáticas, seja por um ângulo qualitativo ou quantitativo. Neste caso, analisaram-se evidências qualitativas que possibilitaram um entendimento de aspectos subjetivos das expressões verbais e compreensões dos diferentes sujeitos e autores de cada artigo. Percebemos o interesse em pesquisar e compreender o processo de implantação, aceitação e utilização das PIC na voz dos diferentes atores envolvidos no cotidiano: usuários, Agentes Comunitários de Saúde (ACS), profissionais de nível técnico e superior.

Por conseguinte, adentrando na análise temática, chegou-se a três categorias a serem discutidas: Bioética da Proteção e autonomia dos Usuários; Compreensão do significado de Práticas Integrativas e Complementares e; Acesso e Aceitação de Práticas Alternativas e Complementares por usuários do SUS. A seguir, a apresentação e discussão dessas categorias.

Discussão

Bioética da Proteção e Autonomia dos Usuários

A partir da leitura e análise temática dos artigos discutiu-se questões referentes às repercussões do uso das PIC, considerando o aspecto da competência bioética relacional dos profissionais com a realidade dos usuários.

Nesse sentido, ocorreu-nos os seguintes questionamentos: como refletir sobre as práticas que salientam o máximo possível os direitos dos usuários, frente ao modelo biomédico que ainda persiste, mesmo em um sistema democrático de saúde - SUS? Modelo este, cujas condutas de muitos profissionais violam o princípio bioético do respeito à autonomia do sujeito, especialmente quando impõem prescrições e orientações de saúde sem escutar as vivências e opiniões dos usuários. Como pensar a autonomia do usuário no contexto da implementação de práticas integrativas complementares?

A BP pode ser compreendida como reflexão crítica e normativa voltada para o conflito moral resultante da ação humana. É recente e foi entendida, inicialmente, como ética aplicada à saúde pública, estendendo seu conceito para uma bioética que se aplica aos conflitos morais envolvidos nas práticas humanas passíveis de consequências irreversíveis aos seres vivos, principalmente sobre indivíduos e populações humanas, considerados em seus contextos ecológicos e socioculturais14.

Esses dilemas são inerentes ao campo do binômio saúde-doença que constitui um dos processos dicotomizadores da existência humana. A nosso ver, as condutas e práticas cuidativas dos profissionais, referentes a esse binômio, tornam mais fáceis quando se abre possibilidade para que o usuário desempenhe papel mais ativo sobre sua própria saúde e tratamento.

No modelo do usuário autônomo os procedimentos recomendados pelo profissional devem ser totalmente compreendidos pelo usuário, que consente ou não com as intervenções, o que pode ser denominado como consentimento informado. A autonomia do sujeito traz a angústia da liberdade de poder decidir por sua própria vida, o que não é nada fácil, considerando que surgem novas definições de início e fim da vida humana, diariamente.

A condição existencial da pessoa que vivenciou a doença pode configurar-se como uma situação especial de vulnerabilidade. A resposta ética perante essa situação específica denomina-se proteção, o que implica em uma visão de sociedade mais inclusiva, de acolhimento à alteridade.

É incontestável a contribuição da medicina alternativa no saber/prático buscando a autonomia do usuário. As PIC, por meio da terapêutica simples, dependem menos do cientificismo duro e rígido, sendo menos cara e acessível a todas as classes sociais15. Assim, as ações a serem implantadas devem ser realizadas por meio de um processo guiado e discutido democraticamente, que promova o aperfeiçoamento e a adequação das PIC. A coparticipação no estabelecimento de ações em PIC é, de fato, tão importante quanto os resultados obtidos, pois permite a reflexão das mudanças na percepção de todos os envolvidos nesse processo16.

Compreendendo o significado de Práticas Integrativas e Complementares

Em relação ao significado das PIC, os artigos analisados revelaram uma variedade de sentidos difusos (Quadro 1), tornando evidente a pouca apropriação da terminologia por parte dos usuários e profissionais. Essa ocorrência pode ser justificada por se constituir denominação recente adotada pelo MS (A3, A4, A5 e A6).

As PIC formam um campo de saberes e práticas cuidativas extremamente múltiplo e diferenciado, articulando um número crescente de métodos diagnóstico-terapêuticos, tecnologias leves, filosofias orientais e práticas religiosas, que correspondem a estratégias sensíveis de vivências corporais e de autoconhecimento17.

As PIC, no Brasil, passaram a ser objeto de interesse governamental de tal modo que, recentemente, o Ministério da Saúde (MS) implantou regulamentações de estímulo à difusão da medicina complementar nos serviços do SUS. Ao partir da perspectiva de que as políticas de saúde se materializam na ponta do sistema por meio de ações dos diversos atores sociais, merece atenção o surgimento de novas práticas de saúde distintas da racionalidade médica ocidental18.

O movimento de busca das práticas alternativas intensifica-se na década de 1960, motivado por vários outros fatores, como: mudança do perfil de morbimortalidade, com a diminuição das doenças infectocontagiosas e aumento das doenças crônico-degenerativas em alguns países; aumento da expectativa de vida; crítica à relação assimétrica de poder entre médicos e usuários, em que o profissional não fornece informações suficientes sobre o tratamento e cura; consciência de que a medicina convencional é deficiente para tratar determinadas doenças, especialmente às crônicas; insatisfação com o funcionamento do sistema de saúde moderno, que inclui grandes listas de espera e restrições financeiras e; informação sobre o perigo dos efeitos colaterais dos medicamentos e das intervenções cirúrgicas19.

Ademais, e sobretudo, as PIC concentram em si o importante e estratégico desafio de romper com o monopólio tecnológico da farmacoterapia no cuidado terapêutico excessivamente medicalizador e iatrogênico. Nesse sentido, elas podem ser consideradas uma rica fonte de recursos interpretativos e terapêuticos capaz de diversificar as abordagens de muitos problemas trazidos pelos usuários aos profissionais20. No Brasil, a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS, aprovada em 2006 e ampliada em 2017 e 2018, estimula o conhecimento, a formação e a disseminação destes recursos nos serviços de saúde.

Acesso e Aceitação de Práticas Alternativas e Complementares por Usuários do Sistema Único de Saúde

A maioria dos artigos avaliados revelam que há uma boa aceitação de usuários do SUS em relação às PIC como um todo. Além disso, os usuários demonstraram as contribuições das terapias complementares para a promoção, prevenção e tratamento em saúde.

Os estudos revisados nos possibilitaram corroborar que a PNPIC contribui para a efetivação do SUS, na medida em que favorece a garantia de seus princípios fundamentais: universalidade, acessibilidade, vínculo, continuidade do cuidado, integralidade da atenção, responsabilização, humanização, equidade e participação social20.

A revisão mostrou que as PIC promovem a adesão dos usuários aos dispositivos de atendimento da rede SUS, uma vez que ampliam o leque de terapêuticas ofertadas possibilitando fazer escolhas, aumentam o grau de corresponsabilização do indivíduo por sua saúde, qualificam a relação profissional-usuário, transmitem conhecimentos sobre fatores que incidem no modo de vida e saberes relacionados ao autocuidado, incentivam a prática pessoal e independente, desencadeiam mudanças de hábitos e melhoram a condição físico-psíquica, aperfeiçoando assim a capacidade reflexiva.

Desse modo, a PNPIC, ao promover uma oferta diversificada de propostas terapêuticas no SUS, valoriza o poder de escolha do usuário, bem como sua participação por meio do controle social na sua implantação, avaliação e monitoramento dos serviços ofertados.

Conclusões

O estudo permitiu resgatar evidências sobre a autonomia do usuário na implementação das PIC. Possibilitou-nos entender que muitas dessas práticas fazem parte da vida cotidiana das pessoas, constituindo uma tradição herdada de familiares e amigos, e as pessoas, de um modo geral, recorrem às PIC, principalmente às plantas medicinais, independente de indicação de um profissional de saúde.

Os sete estudos revisados revelaram questões importantes em relação ao saber popular e ao saber científico referentes às PIC e impactos no cuidado aos usuários do sistema de saúde brasileiro. Além disso, sinalizam um olhar para as PIC como estratégias curativas, como sendo um recurso terapêutico, primeiramente, utilizado para o tratamento e a reabilitação, podendo também ser uma ferramenta de prevenção.

Os artigos evidenciaram, também, a necessidade de investimentos nos processos formativos dos profissionais da saúde desde a graduação, de forma a introduzir o conhecimento relacionado às PIC, visando ao cuidado integral ao ser humano, à promoção da saúde e à humanização da relação profissional e usuário.

Os resultados indicaram que, na concepção dos usuários, as PIC investigadas influenciam positivamente na autonomia do usuário, especialmente pelo fato de compor um conjunto de alternativas terapêuticas que lhe possibilita fazer escolhas, conforme sua singularidade e necessidade de saúde.

Pudemos refletir que, embora as PIC sejam consideradas estratégias eficazes na promoção da saúde, há grande desafio no sentido de integrá-las em um contexto onde o modelo biomédico ainda é hegemônico, tanto nos aspectos epistemológicos quanto culturais. Portanto, consideramos interessante ampliar os estudos e pesquisas sobre as PIC e investir em metodologias capazes de sensibilizar os atores envolvidos, visando expandir a interface com a promoção da saúde, favorecendo a compreensão e consolidação das PIC no cenário do fazer em saúde.

Conflicto de interesse

Os autores declaram que não possuem conflito de interesse de qualquer natureza relacionado ao artigo.

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Datas de Publicação

  • Data do Fascículo
    Jul-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    20 Dez 2019
  • Aceito
    22 Abr 2020
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None San Pedro de Montes de Oca, San José , San José, San Pedro de Montes de Oca, San José , CR, 474, 25112118, 22535660 - E-mail: revista.enfermeria@ucr.ac.cr
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