Resumo
A comportamento corrupto deve ser investigado a partir de diferentes níveis de análise. A nível intraindividual, a personalidade é uma variável relevante para sua compreensão. Objetivo. Na presente pesquisa, buscou-se analisar a influência dos traços de personalidade na intenção de comportamento corrupto a partir do modelo dos cinco grandes fatores da personalidade. Método. Participaram da pesquisa 286 indivíduos com idades entre 18 e 76 anos. Para coleta, foram utilizadas a Escala Reduzida dos cinco grandes fatores da personalidade, a Medida de Intenção de Corrupção e um questionário sociodemográfico. Resultados. Se encontraram correlações positivas entre a intenção de corrupção com as dimensões amabilidade, conscienciosidade e abertura à experiência. Porém, por meio de uma regressão linear múltipla, apenas a conscienciosidade teve efeito significativo. Implicações são discutidas.
Palavras-chave. Corrupção; personalidade; Big five; desonestidade; comportamento antiético
Abstract
Corruption must be investigated from different levels of analysis. At the intra-individual level, personality is a relevant variable for its understanding. Objective. In the present research, we sought to analyze the influence of personality traits on the intention of corrupt behavior based on the Big Five model of personality. Method. This study included 286 individuals between the ages of 18 and 76. A Reduced Scale of the Big Five personality factors, and a Corruption Intention Measurement scale, along general sociodemographic data were part of the data collection process. Results. Data showed positive correlations between corruption intention and the dimensions of agreeableness, conscientiousness, and openness. However, using multiple linear regression, only conscientiousness had a significant effect. Implications are discussed.
Keywords Corruption; personality; Big five model; dishonesty; ethical behavior
Introdução
A corrupção é considerada o maior crime cometido contra a humanidade nos últimos séculos, contribuindo, direta ou indiretamente, com a desigualdade social, miséria, pobreza, fome e morte de milhões de pessoas (Queiroz, 2018). No Brasil, a corrupção ocupa destaque entre as principais notícias e investigações realizadas nos órgãos e setores públicos. Segundo dados levantados pela Diretoria de Combate ao Crime Organizado da Polícia Federal, entre os anos de 2014 e 2017, foram desviados dos cofres públicos aproximadamente 48 bilhões de reais, o que corresponde a uma margem de 33 milhões de reais desviados por dia durante esse período (Leite & Arcoverde, 2018). No ranking proposto pelo Fórum Econômico Mundial, o Brasil é apontado como o quinto país mais corrupto do mundo, ficando atrás apenas do Chad, República Dominicana, Paraguai e Venezuela (World Economic Forum, 2018).
A corrupção pode ser definida como “abuso de poder confiado para ganhos privados”, podendo ocorrer em diversas esferas e proporções a depender do montante de dinheiro e setores em que ocorre (Transparency International, 2018, pará. 2). Enquanto fenômeno multideterminado, deve ser compreendido a partir de diferentes níveis de análise, embora sejam priorizados aspectos contextuais em sua investigação (Wiedenhöft et al., 2019). Buscando um entendimento multinível da corrupção, foi proposto o Modelo Analítico da Corrupção (MAC) (Modesto & Pilati, 2020), que visa compreender as variáveis que influenciam uma tomada de decisão corrupta a partir de quatro níveis bem delineados, sendo eles: nível micro (aspectos intraindividuais), nível meso (variáveis grupais), nível macro (aspectos contextuais) e nível posicional (posição de poder ocupada pelo indivíduo que se decide pela ação corrupta). O MAC pode ser visualizado na Figura 1.
Partindo da definição de corrupção enquanto abuso de poder, o MAC propõe a existência da dimensão posicional. De acordo com os autores, é preciso analisar a posição que o indivíduo ocupa para compreender os preditores do comportamento. Ou seja, entende-se que a posição de poder ocupada em uma situação específica (por exemplo: corrupção ativa X passiva) pode se relacionar a determinantes psicossociais que expliquem a corrupção (Cislak et al., 2018; DeCelles et al., 2012). Tal dimensão seria transversal aos demais níveis do modelo. A dimensão macro, por sua vez, envolve variáveis contextuais sistematicamente analisadas em estudos na área de economia, ciência política, administração e contabilidade (dentre outras áreas), e ressalta a importância de aspectos como a cultura e normas sociais, organizacionais, políticas e econômicas (Akbar & Vujić, 2014; Miura et al., 2019; Yeganeh, 2014). A dimensão meso enfatiza aspectos grupais da corrupção (Armantier & Boly, 2012; Frank et al., 2015) ao considerar que a maioria das decisões tomadas no contexto econômico e político, em alguma medida, envolve discussões em grupo. Já o nível micro engloba fatores intraindividuais como processamento da informação (i.e. aspectos cognitivos da análise da potencial situação de corrupção). Nesse caso, é importante identificar se a corrupção abarca um processo de análise sistemático focado em custos e benefícios da ação (Bai et al., 2014, 2016; Modesto et al., 2020). Ou seja, se os possíveis benefícios se sobrepõem aos riscos, é mais provável que a corrupção ocorra. Essa é uma linha de investigação importante, tendo em vista que, no Brasil, a impunidade deste tipo de crime é elevada (Oliveira & Mohallem, 2017). Por outro lado, alguns estudos têm apontado que a corrupção pode ser entendida como uma prática mais impulsiva e automática (Engström et al., 2015; Kern & Chugh, 2009; Mead et al., 2010), sendo importante analisar o processamento da informação em uma situação potencial de corrupção. Além disso, o nível micro ressalta também a importância de investigar diferentes características do indivíduo, como a criatividade, sobre a qual há evidências em tanto fator que pode contribuir com a desonestidade (Gino & Ariely, 2012). Na presente pesquisa, focar-nos-emos na personalidade, tendo em vista sua importância em um nível micro de análise (Modesto & Pilati, 2020).
Personalidade e o modelo dos cinco grandes fatores (CGF)
Nas últimas décadas, a personalidade humana tem sido foco de interesse e investigação no campo da psicologia, mobilizando discussões dentro da área, principalmente no que se refere às discordâncias quanto à conceituação do construto (Feist et al., 2015). Embora não haja um consenso quanto a sua definição, pode-se dizer que personalidade é um padrão de traços relativamente permanentes que atribuem características únicas aos indivíduos, conferindo-lhes consistência e individualidade (Roberts & Mroczek, 2008). Alguns estudiosos e teóricos do tema apontam que a personalidade teria uma base hereditária, sendo os traços dos indivíduos desenvolvidos na infância para ganhar maturidade na vida adulta. Evidenciam, ainda, que os traços se manteriam mais estáveis a partir dos trinta anos de idade (Lima & Simões, 2000).
De acordo com Feist et al. (2015), os traços são o que conferem as principais diferenças nos comportamentos dos indivíduos, bem como a consistência de seus comportamentos ao longo dos anos e a estabilidade de seus atos em diversas situações. Dessa forma, ressalta-se que mesmo que os traços sejam únicos, comuns a determinados grupos ou ainda compartilhados por uma espécie inteira, seu padrão será diferente em cada indivíduo (Feist et al., 2015).
Os traços de personalidade podem ser utilizados para resumir, prever e explicar o comportamento de um indivíduo. Há, dessa forma, a suposição da existência de um mecanismo interno que regularia o comportamento humano (Silva & Nakano, 2011). De acordo com Costa e McCrae (1988), embora haja certa estabilidade nos traços, eles não são imutáveis, podendo sofrer influência de variáveis motivacionais, afetivas, comportamentais e atitudinais.
Na literatura sobre personalidade, destaca-se o modelo dos cinco grandes fatores da personalidade (Big Five) (Digman, 1990) por possibilitar a predição e explicação da personalidade de forma simples, elegante e econômica (Nunes et al., 2010), sendo o modelo com mais evidências empíricas na psicologia. Segundo Garcia (2006), a capacidade do modelo de descrever a estrutura da personalidade a partir da teoria dos traços, sobretudo a personalidade adulta, tornou o modelo uma referência, tendo sido levantado um grande volume de publicações referentes ao Big Five nas bases de dados internacionais (Cuperman & Ickes, 2009). No Brasil, os cinco grandes fatores têm sido denominados: extroversão, neuroticismo, socialização/amabilidade, realização/ conscienciosidade e abertura à experiência (Silva & Nakano, 2011).
O fator extroversão se refere à quantidade e à intensidade das interações interpessoais e ao nível de atividade, relacionando-se à maneira como as pessoas interagem com os outros (Nunes & Noronha, 2009) e se mostram felizes em fazê-lo (Passos, 2014) bem como o grau de comunicação que apresentam (Nunes & Noronha, 2009). Dessa forma, sujeitos com elevados índices nesse fator tendem a ser ativos, otimistas, afetuosos e falantes, enquanto baixos índices na dimensão indicam tendência a comportamento de introversão e reserva, evidenciados em sujeitos mais quietos, indiferentes e independentes (Hutz et al., 1998).
O neuroticismo se refere ao nível de ajustamento e instabilidade emocional (Nunes & Noronha, 2009), sendo um traço característico de pessoas que vivenciam os estados emocionais negativamente e que não reagem a eventos estressores de forma proativa (Passos, 2014). Indivíduos com altos índices nesse fator tendem a ser ansiosos, deprimidos, impulsivos e autocríticos, apresentando comportamento hostil e baixa tolerância à frustação (Hutz et al., 1998).
A socialização/amabilidade está relacionada à qualidade das relações interpessoais, avaliando especialmente o interesse pelo bem-estar dos outros (Nunes & Noronha, 2009) e a capacidade dos indivíduos em construir relações amigáveis (Passos, 2014). Indivíduos que apresentam altos índices nesse fator tendem a ser generosos e prestativos, enquanto os indivíduos com baixos índices demonstram tendência ao cinismo e irritabilidade, se comportando de maneira rude, vingativa e não cooperativa (Hutz et al., 1998).
A realização/conscienciosidade mede o grau de organização, persistência, controle e motivação para alcançar objetivos (Nunes & Noronha, 2009), sendo um traço predominante em indivíduos que apresentam maior facilidade em seguir normas estabelecidas, possuindo certo controle sobre sua impulsividade e foco (Passos, 2014). Há evidências que o fator conscienciosidade avalia predominantemente características associadas ao cumprimento de normas morais e éticas, apresentado cautela em pensar antes de agir (Carvalho, 2011; Carvalho et al., 2014). Dessa forma, sujeitos com altos índices nesse fator tendem a ser organizados, decididos, confiáveis, perseverantes e escrupulosos, enquanto baixos escores indicam indivíduos pouco confiáveis, preguiçosos, descuidados e negligentes (Hutz et al., 1998).
Por fim, o fator abertura à experiência refere-se aos comportamentos exploratórios e reconhecimento da importância de vivenciar novas experiências (Nunes & Noronha, 2009). Indivíduos que possuem altos índices nesse fator tendem a ser mais liberais, criativos e curiosos, características que favorecem que tais indivíduos possuam um vasto campo de interesses (Palma, 2012). De maneira oposta, indivíduos com baixos índices tendem a ser rígidos em suas crenças, convencionais em suas atitudes, conservadores em suas preferências, dogmáticos e menos responsivos emocionalmente (Hutz et al., 1998).
Alguns estudos buscaram analisar a relação dos traços de personalidade e comportamentos desviantes (Fagbenro et al., 2019; Santos et al., 2012). Santos et al. (2012), por exemplo, investigaram a relação dos traços de personalidade de motoristas com as infrações cometidas no trânsito. Os resultados indicaram que indivíduos que apresentam maiores índices no fator conscienciosidade tendem a se comportar de maneira mais responsável no trânsito, sendo também mais sensíveis aos efeitos da punição, fator que colabora para o seguimento das regras e normas de trânsito. Em contrapartida, indivíduos mais sensíveis à recompensa tendem a buscar sensações na condução, esquivando-se das regras e emitindo comportamentos mais perigosos, resultantes de uma condução mais agressiva (Santos et al., 2012).
Já em um estudo específico sobre traços de personalidade e corrupção, realizado com 300 funcionários públicos de Lagos, ilha localizada na Nigéria (Fagbenro et al., 2019), foram encontradas relações positivas entre atitude frente à corrupção e os fatores extroversão, neuroticismo, amabilidade e abertura à experiência e relação negativa com o fator conscienciosidade.
Os achados anteriores chamam atenção da importância da personalidade para a compreensão de comportamentos desviantes como a corrupção. Essa importância deve ser entendida não apenas em uma perspectiva teórica, mas também aplicada, tendo em vista que testes de personalidade têm sido utilizados como estratégia de prevenção à corrupção para determinados cargos (Arrigo & Claussen, 2003), sendo encontrados alguns resultados satisfatórios (Sced, 2004). Para intervenções dessa natureza, no entanto, é preciso incrementar as evidências que subsidiem tais ações. Nesse sentido, precisamos ampliar as evidências desta relação no contexto brasileiro para auxiliar decisões estratégicas na ocupação de certos cargos.
Considerando a importância que a personalidade pode ter para a compreensão da corrupção e, tendo em vista o postulado pelo Modelo Analítico da Corrupção (Modesto & Pilati, 2020) sobre a importância de analisar características do indivíduo em uma potencial situação de corrupção, o presente estudo teve como objetivo, conforme mencionado, analisar a relação entre traços de personalidade e intenção de corrupção.
Método
Participantes
Participaram da pesquisa 286 indivíduos, com idades entre 18 e 76 anos (M = 33.30; DP = 12.38), sendo 186 mulheres e 100 homens. Do total de participantes, 80 declararam- se servidores públicos (27.97%), 72 funcionários de empresas privadas (25.17%), 37 autônomos (12.93%), 62 estudantes (22.46%), além de desempregados e aposentados (9.79%). A seleção dos participantes ocorreu por conveniência, com participação anônima e voluntária, via internet. Esse tamanho de amostra, considerando um nível de significância de 5% e efeito de R = .15, permite um poder de aproximadamente 82%, conforme calculado pelo software GPOWER.
Instrumentos
Foi utilizada a Escala Reduzida dos Cinco Grandes Fatores (ER5GF) (Passos & Laros, 2015), medida composta por 20 itens, em escala de diferencial semântico, variando de 1 a 5, em que cada polo corresponde a um adjetivo oposto (exemplo: extrovertido X tímido; comunicativo X calado). Para resposta aos itens, os participantes assinalaram o número da escala que melhor descrevia o seu grau de identificação com os adjetivos destacados em cada item. A medida é composta pelas 5 dimensões do Big Five, cada uma com quatro itens, sendo os índices de confiabilidade para cada dimensão: extroversão (α =.87), conscienciosidade (α = .80), amabilidade (α = .82), neuroticismo (α = .77), abertura à experiência (α = .63).
A Medida de Intenção de Corrupção, criada especificamente para o presente estudo, foi composta por seis situações hipotéticas de corrupção em que o participante deveria indicar a sua intenção de agir de maneira corrupta. A medida deveria ser respondida em uma escala de 5 pontos, em que 1 corresponde a totalmente improvável e 5 a totalmente provável de realizar a ação. Os cenários propostos visam, de maneira gradativa, abarcar tanto situações cotidianas quanto situações mais específicas que envolvem prática de ações corruptas em contextos múltiplos. A medida apresentou índices satisfatórios de confiabilidade (α = .71). Um exemplo de situação pode ser visualizado abaixo:
Você é o responsável pelo setor de compras de uma grande empresa. O seu trabalho é entrar em contato com fornecedores com o objetivo de conseguir as melhores propostas de orçamento para sua empresa. Durante o levantamento de preços, um dos contatados ofereceu repassar a você 20% de vantagem em cima do valor total de todas as compras realizadas pela empresa, em troca de você o tornar o fornecedor exclusivo da empresa. A transação não é de conhecimento de seu gestor e você e o fornecedor serão os maiores beneficiados. Quão provável seria você aceitar a proposta do fornecedor?
Ao final do formulário, foi aplicado um questionário sociodemográfico para coleta de dados e informações quanto ao gênero, idade, escolaridade e renda para análise do perfil dos participantes.
Procedimentos de coleta de dados
A pesquisa ocorreu online por meio da ferramenta Google Forms, após aceite do Comitê de Ética e Pesquisa do Centro Universitário de Brasília com parecer número CAAE: 21040619.9.000.0023. Ao acessar o formulário, que fora divulgado por e-mail e redes sociais, o participante deveria ler as informações descritas a respeito do estudo e confirmar ciência e aceite de participação, clicando no campo de confirmação destacado. A indicação do campo era requisito obrigatório para acesso ao restante do formulário, composto por um total de 26 itens, distribuídos em dois conjuntos distintos.
O primeiro conjunto, com 20 itens, referia-se à Escala Reduzida dos Cinco Grandes Fatores de Personalidade (ER5GF). Após indicação das respostas, os participantes passavam ao segundo conjunto, formado por seis itens, correspondentes à Medida de Intenção de Corrupção. Ao final do formulário, foram coletadas as informações sociodemográficas.
Procedimentos de análise de dados
Os dados foram analisados por meio do software SPSS versão 20. Foram utilizados testes de Correlação de Pearson, a fim de identificar um padrão de relacionamento geral entre as dimensões da personalidade e a intenção de corrupção, bem como uma regressão linear múltipla com método de entrada forçada, que possibilitou, de forma simultânea, o teste do efeito preditivo das cinco dimensões da personalidade na intenção de corrupção.
Resultados
Em primeiro lugar, assim como no estudo de Fagbenro et al. (2019), foi conduzido um teste de Correlação de Pearson entre a intenção de corrupção e as dimensões da personalidade. As correlações podem ser visualizadas na Tabela 1.
Conforme visualizado na Tabela 1, foi identificada uma correlação positiva entre intenção de corrupção com as dimensões de amabilidade, conscienciosidade e abertura à experiência, sendo que o maior efeito, dentre estes, foi identificado com a dimensão de conscienciosidade. Já as dimensões de extroversão e neuroticismo não apresentaram relações significativas com a corrupção. Esses resultados chamam atenção, assim como em estudos anteriores, que dimensões da personalidade podem se relacionar com comportamentos desviantes, como a corrupção.
Apesar desses achados por meio de correlações simples, optou-se por testar o efeito conjunto das dimensões da personalidade na corrupção por meio de uma regressão múltipla utilizando método de entrada forçada. Conforme visualizado na Tabela 2, quando consideradas todas as dimensões em conjunto, apenas a conscienciosidade exerce um efeito significativo. O fator amabilidade passa a apresentar um efeito marginalmente significativo e a abertura à experiência deixa de ter uma relação significativa. Nesse sentido, a conscienciosidade é a dimensão da personalidade com efeito mais robusto na intenção de corrupção na amostra investigada.
Adicionalmente, considerando a importância da dimensão posicional (posição que o indivíduo ocupa em certa situação) prevista pelo Modelo Analítico de Corrupção, optou- se por testar o efeito da ocupação de profissionais ativos (servidor público, profissionais da iniciativa privada e autônomo) na intenção de corrupção (ver Figura 2), tendo sido encontrado um efeito significativo, F (2, 186) = 8.21, p < .001, ηp² = .08, indicando que servidores públicos possuem uma menor intenção de corrupção se comparado às demais categorias profissionais.
Discussão
A presente pesquisa teve como objetivo analisar a relação entre traços de personalidade e a intenção de comportamento corrupto. Nesse sentido, permite a análise de fatores intraindividuais da corrupção, conforme postulado pelo Modelo Analítico de Corrupção (Modesto & Pilati, 2020). A compreensão dos efeitos da personalidade se deu a partir do modelo dos cinco grandes fatores da personalidade (Digman, 1990).
Sobre o fator abertura à experiência, verificou-se que maiores índices desta dimensão se relacionaram com maior intenção de corrupção. De acordo com Passos (2014), o fator diz respeito à disponibilidade que o sujeito apresenta para vivenciar novas situações e receber novas ideias, indicando que indivíduos que possuem mais acentuadamente esse traço tendem a ser mais liberais e curiosos. A relação positiva do fator com a corrupção já havia sido encontrada em um estudo anterior que testou essa relação com funcionários públicos na Nigéria (Fagbenro et al., 2019). Segundo Nunes et al. (2010), indivíduos com altos índices em abertura apresentam maior flexibilidade nos valores morais e sociais, tendendo a relativizar mais facilmente suas crenças e valores. É importante chamar atenção também que a criatividade é um elemento marcante de pessoas abertas à experiência, e há evidências de que ela tende a contribuir com a desonestidade (Gino & Ariely, 2012).
Os resultados também apontaram uma correlação positiva entre o fator amabilidade e corrupção. Nunes e Noronha (2009) relacionam o fator à qualidade das relações interpessoais e à capacidade dos indivíduos em construir relações amigáveis (Passos, 2014). Dessa forma, indivíduos com altos índices nesse fator tenderiam a ser generosos e prestativos em suas relações (Nunes & Noronha, 2009). Assim como no presente estudo, a relação positiva do fator com a corrupção também foi encontrada na pesquisa de Fagbenro et al. (2019), indicando que indivíduos que possuem mais acentuadamente este traço podem utilizar-se de suas características pessoais e facilidade em estabelecer relações amigáveis para proveito pessoal. Tal relação pode ser interpretada a partir do entendimento que o favor é uma dimensão que se aproxima da corrupção (Almeida, 2007). Nesse sentido, uma pessoa com maior amabilidade e, consequentemente, mais hábil em estabelecer relações interpessoais próximas e amigáveis, pode ser mais hábil também para desenvolver relações escusas.
Também foi encontrada uma relação positiva da corrupção com a dimensão de conscienciosidade. Conforme mencionado anteriormente, a conscienciosidade se refere ao grau de organização, persistência, controle e motivação para alcance dos objetivos apresentados pelos indivíduos (Nunes & Noronha, 2009). É apontado como um traço mais característico em indivíduos que apresentam facilidade em seguir normas estabelecidas e controle de impulsos (Passos, 2014), podendo apresentar, em adição, comportamentos de preocupação excessiva, perfeccionismo e rigidez nas regras estabelecidas em seus relacionamentos interpessoais (Carvalho et al., 2014).
Em estudos anteriores, foi identificado que o fator conscienciosidade avalia predominantemente características referentes ao cumprimento de obrigações sociais, morais e éticas, e cautela em pensar antes de agir (Carvalho, 2011; Carvalho et al., 2014). De forma menos expressiva, também avalia a capacidade do indivíduo de se perceber efetivo e prudente, exibindo atitudes de organização e planejamento, aspiração a objetivos grandiosos na vida e capacidade de começar e concluir tarefas específicas (Carvalho et al., 2014). Nessa mesma direção, Fagbenro et al. (2019) encontrou uma relação negativa entre corrupção e conscienciosidade em um estudo desenvolvido na Nigéria. A despeito desses achados anteriores, os resultados obtidos na presente pesquisa indicam que as pessoas tendem a optar pela ação corrupta mesmo se mostrando conscienciosos de suas ações e possuindo certo controle de seus impulsos. Ou seja, isso parece indicar que as pessoas conscienciosas, no Brasil, avaliam os riscos da situação e, ainda assim, optam por agir de maneira corrupta.
Tal achado parece evidenciar que há uma percepção de que o crime de corrupção compensa no Brasil, devido à grande parte dos casos saírem impunes. Estima-se, por exemplo, que 97% dos casos de corrupção no Brasil fiquem impunes (Oliveira & Mohallem, 2017). Na medida em que maiores índices de conscienciosidade se relacionam com uma maior chance de corrupção, novos estudos podem incluir a percepção de punição como mediador da relação entre conscienciosidade e corrupção, tendo em vista que a análise dos riscos de punição tem se configurado como um importante preditor da corrupção (Bai et al., 2014, 2016; Modesto et al., 2020).
Com relação ao fator extroversão, não foi encontrada relação significativa entre o fator e a corrupção, diferente do encontrado no estudo de Fagbenro et al. (2019) em que foi possível indicar relação positiva entre o fator e a atitude frente à corrupção. Conforme mencionado, o fator extroversão diz respeito à quantidade e à intensidade das interações interpessoais e ao nível de atividade, relacionando-se à maneira como as pessoas interagem com os outros (Nunes & Noronha, 2009) e se mostram felizes em fazê-lo (Passos, 2014), bem como o grau de comunicação que apresentam (Nunes & Noronha, 2009). Dessa forma, sujeitos com elevados índices nesse fator tendem a ser ativos, otimistas, afetuosos e falantes. Considerando a relação encontrada da corrupção com a dimensão de amabilidade, parece que o tipo de relação que favorece a corrupção no país não envolve apenas um traço extrovertido, mas sim uma característica de apresentar relações amigáveis e de buscar agradar dentro das relações.
No que diz respeito ao fator neuroticismo, não foram encontradas relações significativas. Conforme aponta Nunes et al. (2010), indivíduos com altos índices em neuroticismo tendem a ser mais impulsivos enquanto menores índices de neuroticismo estão relacionados a pessoas mais calmas e tranquilas. Para interpretar a ausência dessa relação, pode ser considerada a proposta do MAC, ao indicar que existem situações que favorecem processos mais automáticos (impulsivos) e situações que favorecem processos mais controlados (deliberados, cautelosos) (Modesto & Pilati, 2020). Ou seja, é possível que, no que se refere à impulsividade X controle dos estímulos (típico do neuroticismo), seja preciso analisar contextos específicos para testar o efeito deste traço da personalidade. Novos estudos podem desenvolver experimentos que eliciem processos cognitivos automáticos e controlados da corrupção e testem a influência do neuroticismo em ambas as condições.
Apesar dessas relações identificadas por meio do Teste de Correlação de Pearson, mesmo procedimento analítico utilizado por Fagbenro et al. (2019), quando analisadas as dimensões da personalidade em conjunto em uma regressão múltipla (análise central na presente pesquisa para o teste da personalidade como antecedente da corrupção), apenas a conscienciosidade exerce um efeito significativo. Tal achado chama atenção, pois se encontra que um perfil analítico, sistemático, de controle e motivação para alcance dos objetivos (Nunes & Noronha, 2009), tende a ser um perfil dominante no que se refere à intenção de corrupção, na medida em que o efeito da conscienciosidade se sobrepôs ao efeito das demais dimensões da personalidade.
Ademais, considerando que a posição que o indivíduo ocupa deve ser considerada como fator explicativo da corrupção (Modesto & Pilati, 2020), identificamos que servidores públicos apresentaram menor intenção de corrupção, se comparado a profissionais da iniciativa privada e autônomos. Estudos futuros podem analisar programas de compliance e ética organizacional comparando empresas privadas e órgãos públicos, a fim de analisar se essa distinção identificada na presente pesquisa se dá por conta do estabelecimento de programas mais efetivos no serviço público sobre prevenção e combate à corrupção se comparado a estratégias da iniciativa privada.
Acreditamos que a presente pesquisa possui algumas contribuições teóricas e aplicadas. Do ponto de vista teórico, a pesquisa apresenta evidências de variáveis intraindividuais (personalidade) que se relacionam com o comportamento corrupto, conforme proposto pelo Modelo Analítico da Corrupção (Modesto & Pilati, 2020). Nesse sentido, evidenciou- se a importância de três (amabilidade, conscienciosidade e abertura à experiência) das cinco dimensões da personalidade como variáveis que se relacionam com o comportamento corrupto em uma amostra brasileira, embora apenas a dimensão da conscienciosidade tenha tido efeito significativo como antecedente da intenção de corrupção por meio da regressão múltipla. Ressalta-se que o teste dessa relação com uma amostra brasileira foi inovador, até onde encontramos na literatura. Vale destacar que os achados da pesquisa divergem de outros contextos culturais (Fagbenro et al., 2019), reafirmando o pressuposto do MAC que a corrupção deve ser analisada de maneira contextualizada (Modesto & Pilati, 2020). Afinal, nos achados sobre a conscienciosidade chamam atenção que, possivelmente, a percepção de impunidade no Brasil (uma marca cultural do país) faz com que a conscienciosidade tenha um efeito diferente na corrupção em uma amostra brasileira se comparado a outros contextos culturais (Fagbenro et al., 2019). Esse é um importante achado para uma compreensão contextualizada do papel exercido pela personalidade na intenção de corrupção no Brasil. Além de contribuições teóricas, a presente pesquisa também tem importância aplicada.
Considerando que testes de personalidade podem ser usados como estratégias de prevenção à corrupção no momento de seleção e promoção de pessoal (Arrigo & Claussen, 2003; Sced, 2004), a apresentação de evidências dessa relação no contexto brasileiro pode nortear processos de tomada de decisão no campo da gestão de pessoas. Porém, esse tipo de indicação deve ser visto com parcimônia, tendo em vista algumas limitações do estudo.
A despeito das relações encontradas terem sido significativas, os efeitos foram pequenos. Por exemplo, o teste de regressão múltipla (análise central na presente pesquisa para o teste da personalidade como antecedente da corrupção), incluindo simultaneamente as cinco dimensões da personalidade, apresentou variância explicada de 7%. Ou seja, existe uma grande parcela da corrupção que é explicada por outros fatores intraindividuais, grupais e culturais, conforme postulado pelo Modelo Analítico da Corrupção (Modesto & Pilati, 2020), e que devem ser explorados em investigações futuras. Além disso, embora acreditemos que testar a relação entre personalidade e corrupção no contexto brasileiro seja um fator de relevância do estudo, tendo em vista os índices de corrupção no Brasil, a amostra utilizada não é representativa da população brasileira. Logo, as conclusões não podem ser generalizadas para todo o país.
Considerando as limitações, acreditamos que novas pesquisas podem ampliar a compreensão da relação entre personalidade e corrupção, por meio do teste de mediadores e moderadores, de modo a favorecer um entendimento mais complexo da relação entre personalidade e corrupção. Isso pode incrementar o poder explicativo das variáveis antecedentes testadas. Por exemplo, conforme mencionado, novos estudos podem testar o papel mediador da percepção de punição na relação entre conscienciosidade e corrupção, tendo em vista que a percepção dos riscos de punição tem se configurado como um importante preditor da corrupção (Bai et al., 2014, 2016; Modesto et al., 2020). Adicionalmente, novas pesquisas podem, em uma perspectiva longitudinal, avaliar se testes de personalidade para cargos de gestão, de fato, podem contribuir com o comportamento ético dos gestores. Por fim, novas pesquisas podem buscar a seleção de uma amostra representativa do contexto brasileiro de modo a testar se as relações identificadas na presente pesquisa podem ser generalizadas para todo o território nacional.
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Datas de Publicação
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Data do Fascículo
Jul-Dec 2021
Histórico
-
Recebido
15 Maio 2020 -
Aceito
05 Nov 2021